Nada mais revelador dos valores humanos, na cultura de um povo, do que o humor. Foi no lance rápido da charge, da gag, da piada, do apelido bem botado, da pantomima, dentre outras gaiatas manifestações dessa maneira de expressão, que aprendi muito do que sei da vida. Não há espaço suficiente aqui para citar os nomes de todos aqueles que, com sua arte refinada de fazer rir, me fizeram ver o mundo de outra forma. Entretanto, face ao mau momento da novíssima geração nacional do riso (convenhamos: aguentar Adão Iturrusgarai, Danilo Gentili, Rafinha Bastos e Marcelo Adnet é dose para leão) e ao atentado terrorista havido em Paris contra os cartunistas do Charlie Hebdo, passei a refletir com meus surrados botões: só há graça na desgraça do outro?
Vivemos numa terra de humoristas, profissionais ou não. Em qualquer lugar você encontra alguém espirituoso, com o chiste afiado na ponta da língua, o dito fescenino cabeludíssimo, a anedota engraçada de fazer chorar de tanto dar gaitada. Começamos esse ritual de alegre descompostura a partir de nós mesmos, rindo da nossa cara larga no espelho todos os dias. Está aí o Tiririca para não me deixar mentir: peruca loura sob um chapeuzinho roto, desdentado, bigodinho de trocador de ônibus, fanhoso, dancinha miúda, o popular cabra fresco e fuleiragem que de abestado só tem o andar. Aí a cabeça, que não para de pensar, maquina: rimos dele pela miséria que ele representa? O artista é o outro (nós) que tentamos destruir com a nossa gargalhada? E agora, José?
Atravessamos um tempo cheio de complexidades que os bem ou mal pensantes, à falta de um melhor termo ou do que fazer, resolveram classificar de politicamente correto. Nêga maluca agora é sobremesa alcunhada de mulher afro-descendente portadora de afecção mental. Anão é o cidadão com altura verticalmente prejudicada. E assim caminha a humanidade, deixando o seu rastro de hipocrisia e cinismo. Contudo, impõem-se cada vez mais o respeito e a tolerância como condições indispensáveis à convivência entre iguais. Duvida? Na rua, tente dar um coió para a moça bem apanhada ou um fiu-fiu para o rapaz de modos delicados, como se fazia à beça no passado. A reprovação será geral, se não der em volumosos processos. E dirão: ainda vai?
Dia desses, dei uma espiada num já velho programa do Chico Anysio. Estavam lá a gostosa burra, o judeu miserável, o árabe desonesto, a bicha afetada, o negro moleque e outros tipos impagáveis do genial cômico cearense. “Isso não é uma mulher, é um defeito físico!”, dizia um outro seu pândego personagem, abraçado à empregada mulata e roliça, à sua esposa desconjuntada. Pensei de mim para comigo: “há quem ria disso hoje?”. O certo é que os tradicionais protagonistas motivadores de chacotas, ditos estereótipos, alguns deles elencados aí em cima, hoje têm por trás de si toda uma estrutura que lhes garante a devida reverência. Ficou menos jovial o mundo? Talvez. Sei apenas que gracejar tornou-se complicado. É que ficou feio dar risada da ferida alheia.
Que as minhas palavras não sejam entendidas como uma restrição à sagrada liberdade de expressar-se ou como justificativa a bárbaros atos de terror como o cometido recentemente na França. Leiam-nas como o epitáfio de um certo tipo de humorismo que há muito se encontra morto e enterrado, apesar de vez ou outra botar o rosto na janela. Minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa: aqui mesmo, neste hebdomadário espaço que me é reservado, poderão ser encontrados traços desse jeito galhofeiro de enxergar o planeta. Pudera: antigo morador da vila da Base Aérea, ex-aluno do Colégio Cearense, torcedor do Ceará, arquiteto, rueiro e boêmio não poderia dar em outra coisa. Mas estou melhorando: de manhã, vi um sujeito se estatelar no chão e nem tremi a boca...