"Toda menina quando enjoa da boneca é sinal que o amor já chegou no coração...", cantou de lá de cima da prateleira
A Emília e Isabel
“Ela não nos quer mais. Sinto isso em seu olhar”, deixou escapar em tom baixo e grave um Polichinelo colorido e triste, sentadinho sobre o parapeito da janela. Emoldurando-o, um girassol, uma natureza morta, um cachorro e um casario crepuscular lhe faziam coro, em sua natureza pictórica: “Somos o que ela pensava que era o mundo. Hoje ela não pensa mais assim”. A merendeira e a família de estojos, fechadas, nada diziam, vazias.
“Em minha dura vida, já tive várias cores, mas nunca uma tão bela quanto esta e foi ela quem escolheu”, sorria, garbosa, a parede verde-água, “não posso aceitar isso, doem-me meus tijolos só de pensar que vou ter uma outra cor, talvez sóbria e sem graça”, concluiu, bipolar. “Ela está nos esquecendo, trocando-nos por outros interesses”, grasnou a bruxinha ciumenta sob o chapéu pontudo. “Isso já aconteceu antes com alguns de nós. Quem aqui se lembra do que houve quando a irmã dela mais velha, nossa antiga dona, ficou mocinha?”, instilou um ladino Meu Bebê. “Isso é a adolescência chegando, bobos, acontece com toda menina”, ralhou uma empertigada e sexy Suzy. “Ora, deu-se até com a mãe dela, minha primeira senhora...”, completou uma já sambada Amiguinha de olhos azuis, o da esquerda quebrado.
“Toda menina quando enjoa da boneca é sinal que o amor já chegou no coração...”, cantou de lá de cima da prateleira, zombeteiro, um sanfoneiro ligado na tomada. Súbito, um exército de Barbies arromba a porta do armário e sai correndo pelo assoalho em enorme estrídulo. “Não pode ser, não é verdade”, lastimava-se a Sereia. “É sim, já fazemos parte do seu passado”, reportava a Jornalista. “Não há outra menina nesta casa! Se tivermos muita sorte, seremos doados para outra garota, que nem sabemos quem é. O que será de nós?”, berrou a Morena, desolada. “Ah, bem que eu desconfiei daquele garoto do colégio dela...”, maldou a Pink Halloween. “Isso aí são as amigas influenciando. Sabe como é, passarinho que anda com morcego dorme de cabeça para baixo”, decretou um cansado Ken de tantas namoradas de plástico. Mas foi a calunga Benedita, abrindo seu coração de pano, quem entoou o mais profundo lamento: “Vim da África escravizada para sofrer no Brasil. E agora, serei enjeitada? Ah, que sina a minha...”.
E assim, no quarto ainda infantil, as coisas da menina, sem paz, se desesperavam com o possível e talvez iminente abandono. Suas roupas e sapatos se debatiam no closet, em vão. Os livros e gibis, antes risonhos e cheios de boas mensagens, amparavam-se uns aos outros na estante de metal. “Sou forte mas isso é demais para mim. Quem nos lerá, então?”, dizia uma Mônica entre dentes, os olhos vermelhos. “Não temos saída. Sinto-me debulhado”, queixou-se, coerente, um deprimido Visconde de Sabugosa. Candidamente, do alto de sua sabedoria, o Mago Merlin arrematou: “Companheiros e companheiras de jornada, mesmo pesarosos, não podemos fugir ao nosso destino. Fomos criados para alegrar as crianças, quaisquer que sejam elas, animá-las e servi-las em seus caprichos. Depois elas crescem e passamos ao domínio de outras, a quem teremos igualmente de fazer felizes. Não há magia, essa é a nossa tarefa”. Um livro aberto entregava a lira de Casemiro: “Oh, que saudades que tenho da aurora da minha vida, de minha infância querida que os anos não trazem mais...”.
Ruídos no corredor. As coisas da menina voltam rapidamente aos seus lugares. Em grande algazarra, entram no quarto a peralta e suas amigas. Já fã do legítimo rock’n’roll, diz ela à sua turma: “Garotas, descobri hoje na coleção do meu pai esses CDs dos Rolling Stones e do Cazuza. Vocês precisam ouvir essas duas músicas, Time waits for no one e O tempo não para...”.