Crônica em linha curva

Seg, 10 de Dezembro de 2012 11:20



Romeu Duarte, Conselheiro do IAB, escreve todas às segundas- feiras no Jornal O Povo, de Fortaleza

A Roberto Castelo

 

A notícia o pegara em cheio. Após um longo dia de labuta, recheado de problemas e soluções, a má nova dera com ele em um bar, cercado de amigos e falando da vida entre goles e gargalhadas. O Mestre falecera, afinal. Mesmo consciente do seu precário estado de saúde, de sua idade avançada (“para muito além do combinado”, dissera ele certa vez, brincando com a longevidade daquela vida admirável), da melhora e da piora dos sintomas, ele ainda acreditava em um milagre. “Haveria milagres disponíveis para os comunistas?”, pensou de si para consigo, no dia anterior, semblante preocupado frente a um espelho mudo. Agora sim, naquele botequim, nem o respeitoso silêncio dos companheiros, solidários com a sua profunda dor, poderia redimir aquela noite de eterna e amarga lembrança. Não havia mais nada a fazer ali. Terminado o milho da alegria, finda a pipoca da boêmia.

 

Conta paga e até breves cumpridos, entrou no carro e viu-se dirigindo de volta ao escritório. O rádio era só de lembranças e condolências ao Mestre, aquele que não se sentia atraído pela linha reta, “dura e inflexível, criada pelo homem”, como ele mesmo lhe dissera certa vez no Rio de Janeiro, os olhos velhos e brilhantes, mas pelas curvas, presentes nos corpos das mulheres e nas montanhas brasileiras, de onde retirava inspiração para o seu traço plástico, econômico e certeiro. Chegando ao seu local de trabalho, como um autômato, dirigiu-se à biblioteca, pejada de livros e revistas sobre a obra do Mestre, esta, até a pouco, referência técnica e, então, páginas inúmeras impressas com a tinta da saudade. A memória, parceira nem sempre confiável, era para ele, naquele momento, um útil e solitário barco raquítico num mar tormentoso de lamentos.

 

Lembrou-se da infância na pequena cidade do interior, quando rabiscava a carvão, nas paredes e no chão, o seu mundo real e imaginário. Adolescente, a alva novidade das formas da Pampulha foi para ele o peso final em sua decisão de ser arquiteto. Mais tarde, em Fortaleza, o conhecimento aprofundado do métier, à sombra das mangueiras do Benfica. Formado, a vida em Brasília, momento-mor e ocaso da modernista Carta de Atenas. De volta à Loura Desmiolada do Sol, como chamava (chama) esta cidade, sempre resmungando quanto à sua feiúra e à sua aversão ao planejamento. Enquanto tudo isso, o Mestre transubstanciou-se: de preguiçoso estudante das Belas Artes, aventurando-se entre o futebol de areia, o jogo de palitinho e as pernas das vedetes, assumiu-se como o melhor tradutor do universo curvo de Einstein, plantando belas flores de concreto na face do planeta, não sem denunciar, a cada declaração sua, a opressão, a violência e a exploração que o homem, lobo de si mesmo, perpetrava contra seus iguais. Cidadão do mundo, mas carioca inveterado, construiu farta e elogiada obra que até hoje desafia, além da gravidade, as bocas abertas dos seus muitos pascácios detratores, por motivo do seu compromisso inarredável com a beleza, bem que sempre procurou compartilhar por fundamental.

 

Fonte: Jornal Opovo- Romeu Duarte - 10/12/2012 

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