Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: A despedida

Seg, 05 de Maio de 2014 14:02



Arre, finalmente chegamos. Até para se enterrar, o sujeito tem que sofrer num engarrafamento. O rabecão levou bem uma hora entre a funerária elegante na Aldeota e o Cemitério São João Batista, entalado na Duque de Caxias apinhada de carros. Acho que o semblante do distinto aí, encerado como são os dos defuntos, era mais simpático na saída do velório. Perder tempo no trânsito enfurece qualquer um, mesmo que seja para vestir o paletó de madeira. Pessoas de preto, pessoas de branco, muitos óculos escuros, aqui e ali um desmaio no portão do campo santo. Pipoqueiros, doceiros e cafezeiras, atentos abutres. No entorno, muito lixo e casas em mau estado alvejadas pelo sol da tarde. É, parece que vai ser um sucesso de público o enterro do figurão.

Nunca fez mal a ninguém, nem bem também. Sempre viveu nessa zona cinza e penumbrosa dos míseros favores, dos pequenos expedientes, dos falsos e demorados abraços. Velho e abandonado pelos familiares, acabou vitimado por uma conspiração fatal das doenças iniciadas pelo fonema “K”, que tanto abatem os idosos: queda, catarro, coração e caganeira. O esquife é agora retirado do veículo fúnebre e posto sobre o carrinho que o levará à capela pela via ladrilhada. Ergo a vista e enxergo a multidão de túmulos à volta. A necrópole comete os mesmo erros da cidade dos vivos, o bairro rico de um lado, com suas sepulturas caras e luzidias, e o bairro pobre do outro, com suas covas rasas e ossários imundos. Não poderia ser diferente, morte e vida irmãs. 

 

Aos poucos, vai sendo preenchida a nave do oratório. Gente importante, gente humilde, gente simplesmente. A viúva e seus dois filhos, todos imperturbáveis em suas roupas austeras, dir-se-ia aliviados com o passamento do esposo e pai. Era nítida a impaciência da mulher, bem como o desejo de que tudo acabasse logo, sentimentos manifestados com longos suspiros e resmungos. Um bêbado, como sempre, irrompe na sala e executa o seu ridículo número: “Fulano, que maldade é essa de ir embora assim? Tão bonito e arrumado no caixão, parece que vai para o Rio de Janeiro. E agora, amigo, como é que eu vou me virar?”. Um dos filhos arrastou-o vigorosamente pela gola da camisa e jogou-o lá fora, entre as ervas daninhas, o padre entoando justo o cântico final.

 

O cortejo, ataúde à frente, seguiu pela alameda principal do cemitério. Vi quem há muito não via, o funcionário público corrupto de olhos vermelhos, a bela morena do passado de face encarquilhada e passo torto, o atlético juiz de outrora ora entrevado numa cadeira de rodas, todos corrompidos pela cruel e avassaladora passagem dos dias. As árvores do caminho, os braços-galhos entrelaçados, faziam a sombra sobre nós. Comentário baixinho, mas audível, de uma víbora acolá: “Quando voltar para casa, vou tomar um senhor banho com Aseptol, botar para lavar esta roupa com o sabão mais ativo e bater os sapatos na entrada para tirar essa areia. Ninguém dá fé dele, mas o cão mora aqui”. À direita, a tumba da família, o buraco no chão, as gavetas, fim de papo.

 

Os coveiros, em rotos macacões, já desciam o de cujus para sua derradeira morada quando ouve-se um grito feminino na franja da pequena multidão: “Parem já com isso! Interrompam o sepultamento! Respeitem a dor dos outros, de quem sempre foi humilhada, de quem passou a vida escondida com medo. Deixem-me vê-lo pela última vez!”. Era a outra, a segunda mulher do finado (lá fora, disseram-me haver mais duas), um arquivo vivo e sombrio, cheio de mágoa e rancor, agarrada aos filhos rapazes. “Siga avante, mestre, enterre o homem que eu mesmo não vou dar esse gosto a essa cunhã”, rasgou a matriz, apoiada pelos rebentos. Os da filial não gostaram do desfecho e partiram para o pau. “Fortaleza, ô terra de muro baixo”, chorou a matrona, o lábio sangrando.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/05/05/noticiasromeuduarte,3245812/a-despedida.shtml

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