"Princípios e conceitos" - Artigo de Roberto Ghione.

Ter, 06 de Maio de 2014 08:30



Princípios e conceitos

Roberto Ghione

             

     A essência do urbanismo consiste em determinar as diretrizes para a construção de cidades pacíficas e civilizadas, estimulantes da convivência entre as pessoas, inteligentes e racionais, estreitamente interligadas com o território, sadias e sustentáveis, integradas com a natureza, respeitosas do passado e abertas ao futuro, conciliadoras entre a identidade afirmada na história e os desafios da contemporaneidade, manifestação suprema da cultura de um grupo humano.

            A realidade das cidades brasileiras demonstra como esses princípios do urbanismo encontram-se afastados da efetiva implementação. O próprio conceito de cidade remete a convivência, intercambio, comunidade, manifestação evidente da civilidade, da condição de cidadão, habitante, partícipe, proprietário. A etimologia provém do latim Civitas: Civis (cidadão) e Itas (condição de). Traduz um sentimento de pertencimento a um território e a uma comunidade, origem do conceito de Pátria. Cidade ou parte dela, o bairro, define muito mais que um fato físico, um território transformado para desenvolver as necessidades de um grupo humano, uma construção cultural, uma interação entre natureza e cultura. Define sentimentos coletivos difíceis de quantificar ou racionalizar. Sentimentos expressados no orgulho cidadão, na gentileza urbana, nas manifestações da cultura, nas competências esportivas, nas celebrações dos rituais da convivência. Sentimentos de tempo e lugar condensados por vínculos afetivos, culturais e históricos. Pátria refere a país, paese em italiano, que provêm do latim pagus, aldeia, origem também do conceito de pagão,vinculado ao lugar, à terra, oposto ao sacro, o sagrado, que vêm de Deus.

 

O conceito de cidade, como o de pátria, pode ser assimilado ao de Lugar de nascimento, terra paterna, natural ou adotiva de um ser humano, com a qual se sente ligado por causas que superam o racional. Lugar como espaço transcendente, qualificado pelas relações humanas que lhe dão sentido e pela inteligência das ações que transformam o território, condicionam os comportamentos e definem a cultura.

Atentos a esses princípios e conceitos, resulta complicado e contraditório chamar as cidades contemporâneas brasileiras de tais, do modo como vêm sendo configuradas, assim como resulta difícil considerar o urbanismo como tal. Construções, edifícios, ruas, espaços, etc. que não estimulam a convivência, não honram o conceito de Civitas, podem ser chamados de qualquer coisa (condomínio, clube, residence, prédio, chateau, privé, conurbações, eixos de expansão, bairros planejados, novas urbanizações, amontoado de casas ou de edifícios, designações de moda em qualquer idioma promovidas por estratégias mercadológicas...), menos de cidade. De igual forma, o urbanismo que não promove os sentimentos de Pátria, de Lugar, com suas conotações existenciais, pode ser considerado um amontoado de leis, um conjunto de tramitações burocráticas, um compendio de tecnocracia, porém jamais a disciplina cuja essência foi descrita no inicio. 

A sociedade brasileira assiste, sem ter plena consciência, à destruição do conceito de cidade enquanto ambiente de celebração da vida em comunidade e encontra-se mergulhada em círculos viciados que impedem o desenvolvimento sadio de estruturas urbanas e humanas qualificadas. A enorme pressão exercida pelo crescimento da população urbana e a consideração do território como mercadoria tem extrapolado as previsões e desvendado a crise do planejamento na cultura nacional.

A reflexão acerca dos princípios e conceitos de urbanismo, cidade e arquitetura precisa ser reconsiderada, melhor avaliada e inserida na cultura social e política, se o objetivo é que o Brasil evolua em termos de efetivo desenvolvimento.

Urbanismo como política de Estado e Arquitetura como matéria e essência dele são hoje conceitos difusos. A real natureza e necessidade não aparecem nos discursos políticos nem supera a burocracia de muitos organismos públicos que atendem problemas específicos, sem orientação política ou filosófica para instituir ações de valorização das cidades.

No campo profissional, a ideologia do edifício isolado do contexto e do “arquiteto estrela”, cuja obra deve aparecer e se destacar, ainda se ensina e persiste em muitas consciências. A discrição e o bom senso como estratégias de intervenção são substituídas pela espetaculosidade de um tempo que promove a individualidade, o egoísmo e a fragmentação da cidade.

A urbanidade como instrumento da sociabilidade e a arquitetura como qualificadora do ambiente construído são conceitos amplamente difundidos, porém pouco assimilados na cultura brasileira, se consideramos o modelo de cidade em construção. O sinal de alerta ascendeu com a violência, a exclusão, a imobilidade e a ausência de equidade, e precisa de ações emergenciais para resolver o colapso urbano e restaurar a integração social.


Reportar bug