Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal o POVO: Bola pra frente

Seg, 09 de Junho de 2014 10:15



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

O vento danado do mês de junho faz tremular as bandeirinhas verde-amarelas estendidas sobre o Joaquim Távora. Casas humildes ostentam garbosamente o pavilhão nacional. O ouro e as matas do Brasil também se espalham generosos nas calçadas e nos beirais, enquanto um tatu maroto, pintado com esmero sobre o asfalto, dá pezinho e pisca um olho para os passantes. Tudo transpira ansiedade e esperança. O menino nu da cintura para cima, o cabelo à moda craque, dribla adversários imaginários com uma pelota idem. No semblante sereno da senhora à sombra do nim, toda a sabedoria do mundo. Os carros buzinam como a agradecer pela decoração daquele pedaço da cidade. Aquela gente simples resolveu fazer a felicidade com as próprias mãos.

No zoadento bar da Aldeota, as opiniões e apostas animam o ambiente. “Cuidado com a Argentina. Quem tem Messi, Di María, Agüero e Higuaín não está para brincadeira. Quando terminar a Copa, virão todos jogar no Fortaleza”, diz o provocativo torcedor do Leão, secador emérito do Alvinegro de Porangabuçu, no que é rebatido por um fanático pelo Vovô: “Pois eu lhe dou a vantagem de um gol, canalha, e mesmo assim vamos ganhar. Outra coisa: nem se essa raça vier o teu time não vai sair da Série C!”. A seleção é a pátria de chuteiras com a faca na boca, diria hoje, talvez, Nelson Rodrigues. A cerveja farta esfria a goela e esquenta os ânimos. A vaia come solta quando entra um torcedor do Ferrim vestido com a camisa azul da Bósnia-Herzegóvina.


No ônibus vagaroso, lotação mediana, a visível preocupação com o possível assalto e a iminente paralisação de motoristas e cobradores não consegue encobrir a atenção para com o evento maior. “Deu no rádio”, diz o trocador, pé sobre a gaveta, “que o Felipão deu um carão daqueles na negrada, que estava tudo errado, que eles estavam jogando pedra na lua”. O chofer encara o colega de trabalho no espelho: “Ali é um cabra ignorante. Parece um tio meu lá de Arneiroz, que amansava jumento a murro”. “Meu senhor, pare de falar besteira e olhe para a frente, senão, pense numa barruada...”, cutuca a velha franzina, arrematando: “Homem é tudo igual. Quando não está atrás de saia, está atrás de bola”. O estudante folgado ri que chora, a bolsa cheia de figurinhas bugas.


O velório se dava num ritmo arrastado, o povo se abraçando e lamentando o passamento do finado, este, aliás, com um tristíssimo aspecto, talvez por não ter tido tempo nem para assistir à abertura do campeonato mundial. O cafezinho (batizado com uísque) rolava solto, inspirando paixões futebolísticas e outras mais. “Agora que o papai se foi”, diz o filho do morto, mãozinha espalmada sobre o peito, “posso desabafar: que uniforme horroroso é o nosso! Aquelas cores não combinam nem em Paris! Ah, como me dói ver o Hulk, aquele do mega derriére, enfiado numa roupa podre daquelas...”. A tabela dos jogos de mão em mão, as pessoas agendando ver as partidas juntas. Súbito, por molecagem, o sistema de som da funerária entoa firme “Pra frente, Brasil”...


Demorou a pegar, mas, até que enfim, chegou a hora. O atraso das obras, o falso legado, a presumida roubalheira, a safadeza da Fifa, a síndrome de vira-lata raivoso, a pérfida traquinagem dos políticos, nada disso foi bastante para empanar a festa. Nem que sejamos mais uma vez campeões, nossa vida não mudará tão rapidamente assim da água para o vinho. Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Perde seu precioso tempo quem briga com o simbólico. Apesar de tudo, eis-me aqui, em plena Praça José de Alencar, olho na tela e o coração aos pulos. Ao meu lado, um maluco, a bordo de uma empanada de guarda-chuva velho e uma puída camisa 10 da Canarinha, com um cabo de vassoura como cetro, berra a plenos pulmões: “Vai ter Copa, doido!”.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/06/09/noticiasromeuduarte,3263645/bola-pra-frente.shtml

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