Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: A cidade posta à mesa

Seg, 30 de Junho de 2014 18:32



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Se a cidade é uma coisa complexa e complicada, o saber/fazer que lhe estuda e aborda fisicamente, o urbanismo, não o é menos. No mundo ocidental, construídas ao longo dos séculos e ao sabor dos eventos por mãos leigas e eruditas, as cidades só se tornaram um objeto de conhecimento específico no alvorecer do século XX, quando Ildefonso Cerdá, o criador do ensanche de Barcelona, deu um nome e um estatuto a esse ofício. Até então, elas se reproduziam nos mundos Velho e Novo em seus caminhos, marcos, articulações, barreiras, limites e bairros, modelo tradicional do fazer urbano descendente da trama hipodâmica e do cruzamento do cardus com o decumanus. A herança do desenho ancestral mora no corpo e na alma de toda e qualquer urbe, grande, média ou pequena.

 

Mas, a essa altura, a cidade já se transformava em monstro na fumaça da Revolução Industrial. Novos meios de transporte, vias rasgando o antigo tecido citadino, o êxodo avassalador de levas e levas de gente do campo, as fábricas e os bairros operários, as favelas e as áreas chiques. Segregação, espoliação, exclusão, apartação, maldição. O urbanismo modernista vai recortar as cidades em zonas de trabalho, habitação e recreação, unidas pelo autorama rodoviarista da circulação. O planejamento urbano e seu corolário, o plano diretor, surgem como panaceias abstratas para todos os males das aglomerações humanas, deixando em último plano, calado e esquecido, seu pretenso beneficiário, o habitante. Hoje, em tempos líquidos como querem alguns, a cidade se faz do medo dos que temem ficar para trás.

 

Diria Fortaleza: “E eu com isso, caixão de lixo?”. Um forte arruinado em meio a um imenso areal, poucos sobrados, tantas choupanas, uma mera hipótese geográfica, foi esta a imagem de nossa capital por muitos e muitos anos. O algodão escoando pelo seu porto no século XIX trouxe-lhe a Belle Époque, deu-lhe modos e maneiras afrancesadas, construiu-lhe a Praça do Ferreira e o Theatro José de Alencar. Toda essa belezura estanca nos anos de 1930 com a industrialização e a periferização da cidade, Jacarecanga e Arraial Moura Brasil, Aldeota e Pirambu. A Loura irreverente e anárquica, avessa a planos e ideias amplas, cresce, incha, se muda em metrópole descapitalizada e dividida, cidade leste rica, cidade oeste pobre. Nos dias que correm, densa e desigual, feia e violenta, ela nos convida a decifrar seus intricados enigmas.

 

Numa palavra: a cidade é a maior invenção do homem. Tem cheiros, sabores, sons, texturas, jeitos, aspectos e detalhes, num todo que é maior que a soma de suas partes e permeado pela memória. Dela aproveitamos, como diz Ítalo Calvino pela boca de Marco Polo, a resposta que dá às nossas perguntas. Aliás, quem sabe se as seis propostas para o novo milênio que o escritor cubano-italiano, no apagar de suas luzes, apresentou como norte à literatura não sirvam também, da mesma forma, ao urbanismo? Decerto, nossas novas formas de viver estão a exigir leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência, o que aproxima a arte de reunir palavras em busca de um sentido daquela sua outra irmã que procura o mesmo fim, articulando espaços, fluxos, economias e pessoas.

 

Eram esses os temas que animavam a conversa daqueles arquitetos, sentados em círculo no escritório simples, instalado no alto edifício varado pela luz vespertina. À frente de todos, representada num mapa multicor com suas virtudes, defeitos, potenciais, ameaças e perspectivas, a matéria de sua atenção, como profissionais e cidadãos-moradores, jazia plácida e desafiadoramente sobre a mesa de madeira e vidro. A ambiciosa tarefa de compreendê-la e nela intervir já havia consumido rios de tinta e florestas de papel. Quanto mais cansados, mais motivados, pois a cidade é uma mulher que quer sempre o melhor dos seus amantes. As primeiras estrelas decretaram o fim daquela reunião. Despediram-se calorosamente com a promessa de um breve novo encontro. Lá fora, a vida era um longo texto não verbal.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/06/30/noticiasromeuduarte,3274387/a-cidade-posta-a-mesa.shtml

Reportar bug