Arquiteturas do Brasil

Qua, 09 de Julho de 2014 12:50



Introdução
Brasil, país continental, exuberante, tropical. De geografia ondulante, agreste e sensual, feita de mar, selva e sertão. De rios amplos, montanhas que mergulham no oceano e natureza fascinante. Mistura de raças, cores e culturas. Unidade diversificada ou heterogeneidade integrada? É possível pensar em expressões culturais, através da arquitetura, que identifiquem um país vasto e diverso?  Em tempos de globalização, como reforçar uma identidade nacional através de manifestações culturais como a arquitetura e o urbanismo? Até que ponto os edifícios e as cidades brasileiras são testemunhas genuínas da cultura local, resultado de influências externas, ou manipulações do capital?

O pensamento acerca do Brasil precisa ser plural por natureza. A diversidade é a essência do país e sugere hipóteses que permitam uma interpretação da sua realidade. Diversidade acentuada pela condição periférica de país emergente, aberta ao consumo acrítico de modelos e imagens, que propõe a discussão acerca do ”complexo de vira lata” definido por Nelson Rodrigues. Centro ou periferia? Protagonista ou acompanhante? Tensões que definem a evolução cultural de um país que tem demonstrado criatividade e competência suficientes para um desenvolvimento autônomo, porém se debate no dilema entre a independência ou a subordinação.
 
A tradição moderna
A história da arquitetura brasileira oferece gestos, atitudes, pensamentos e posturas orientadas à construção de uma identidade nacional através da integração e adaptação de ordens universais ao contexto local. O Movimento Moderno, que significou a ruptura internacional com os processos históricos, teve, no Brasil, um particular desenvolvimento, que influenciou a cultura nacional e definiu uma tradição de modernidade que perdura até hoje. Os conceitos da arquitetura moderna baseados nas possibilidades plásticas das novas técnicas construtivas, na integração espacial, na articulação entre interiores e exteriores e na expressão tecnológica foram explorados, com extrema competência, por gerações de brilhantes arquitetos brasileiros. De igual forma, conceitos pensados no frio e hermético contexto europeu encontraram, nas condições climáticas tropicais, na exuberância natural e na cultura local, a oportunidade propícia para um desenvolvimento eficiente e criativo. A cultura da modernidade arquitetônica brasileira assumiu características próprias e surpreendeu o mundo com pilotis monumentais, brises coerentes com o clima local, continuidade entre interiores e exteriores, abertura de contextos urbanos, incorporação das artes plásticas, espaços públicos pintados com as cores da vegetação nativa, introdução de elementos vazados, integração de obras novas em contextos históricos, e curvas e ondas que traduziram, em formas construídas, as ondulações do território natural, a sensualidade das mulheres amadas e a ginga festiva do povo brasileiro.
 
De igual modo, a utopia social teve materialização serpenteante nos morros da periferia carioca, e a utopia urbanística impressionou com a construção da cidade que unificou a teoria dos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) com a monumentalidade da nova Capital.
 
O concreto aparente foi explorado em suas possibilidades plásticas e técnicas. A estrutura definiu a forma de edifícios transcendentes, racionalizou a concepção e o pensamento da arquitetura, ousou em proezas construtivas, qualificou grandes espaços cobertos e foi matéria prima da criatividade manifestada em singular brutalismo local.
 
A diversidade cultural, climática e geográfica motivou adaptações da modernidade acordes com as características de diferentes contextos. Diversas cidades tiveram “maestros” ou determinaram a formação de escolas locais, que promoveram as transformações baseadas nos ideais modernos. No caminho inverso, produções realizadas a partir das próprias circunstâncias regionais traduziram-se em obras singulares que expressaram contraculturas do dogma moderno, com utilização de materiais alternativos ou inspiradas na cultura, paisagens, possibilidades e limitações dos contextos de produção.
 
Realidade e desafios
A elaboração da síntese de uma possível identidade arquitetônica e urbanística brasileira resulta complexa pela própria complexidade e diversidade do país. O conceito de pluralidade prevalece ao tentar definir as características da produção nacional de um modo inclusivo e abrangente, que promova a valorização das diferentes arquiteturas do Brasil. Tal diversidade fica enfatizada, ainda mais, pelas tensões e conflitos derivados das históricas e persistentes desigualdades sociais, assim como pelas assimetrias existentes entre regiões favorecidas politicamente por processos de notável desenvolvimento econômico, em contraste com grandes extensões do país ancoradas no atraso e no subdesenvolvimento.
 
Neste contexto, a realidade da produção arquitetônica e urbanística brasileira compreende disparidades entre regiões privilegiadas pela concentração de poder, informação e mídia, de outras mergulhadas na marginalidade e no esquecimento. Assim mesmo, as desigualdades sociais dividem a atividade profissional entre “arquitetura para ricos”, destinada a satisfazer as demandas das grandes corporações, do mercado imobiliário, casas e apartamentos das classes privilegiadas, de outra comprometida com a crua realidade das cidades e com as carências históricas de habitação e equipamentos destinados às necessidades sociais urgentes e angustiantes. Divisão entre uma atividade profissional obediente e subordinada aos interesses do mercado, de outra pensante e crítica de uma realidade que impede o desenvolvimento nacional e cultural genuíno.
 
A produção arquitetônica dos últimos anos revela persistências da tradição moderna e das conquistas culturais do Século XX, e novos desafios que precisam ser assumidos no contexto do crescimento da população urbana, da crise de planejamento das cidades, da constante desigualdade social (que condena milhares de brasileiros a morar em condições de extrema pobreza) e da predominância da economia de mercado, que provocou transformações urbanas irreversíveis em beneficio do interesse privado e em detrimento do bem estar geral.
 
O paradigma de desenvolvimento baseado no privilégio do capital e do consumo tem transformado o território em mercadoria oferecida ao melhor pagante, renunciado ao planejamento urbano e regional como prerrogativa governamental e subordinado as decisões urbanísticas aos interesses da iniciativa privada. Complementarmente, políticas implementadas na última década tem tirado milhões de brasileiros da pobreza, porém estimulados a ingressar na espiral de consumo que provocou o crescimento econômico do período. A negligência oficial nos processos de planejamento determinou graves problemas de exclusão social, violência e imobilidade, que hoje padece a maioria das cidades e determinam o atual desafio para arquitetos, urbanistas e gestores urbanos.
 
Em um contexto de acelerada urbanização, que levou mais de 80% da população a morar em cidades, estas tem crescido com muita construção e pouca arquitetura. Encontrar obras significativas e transcendentes implica realizar longas peregrinações entre edifícios repetitivos do receituário de venda imobiliária. O edifício-objeto, independente de qualquer intento de integração urbana, é um legado da cultura da modernidade que continua presente na configuração de paisagens urbanas homogeneizadas e sem identidade. Por outra parte, ambiciosos programas de habitação popular impulsionados pelo Governo Federal tem resultado, com honrosas exceções, em amontoados de casas ou edifícios sem urbanidade nas periferias das cidades, naturalmente, com escassos valores arquitetônicos. Recursos que poderiam ter tido melhor aproveitamento e oportunidades perdidas de fazer cidade constituem um enorme passivo urbanístico e social, uma imperdoável falta de visão histórica que determina a negligência pela qual seremos julgados por gerações vindouras. No âmbito legal, a elaboração, na última década, de um conjunto de normas destinadas a favorecer o direito à cidade e a implementação de condições de sustentabilidade, segurança, e ordenamento urbano e territorial constitui um rico patrimônio de legislação e enunciados conceituais, pendente de aplicação na realidade brasileira.
 
Arquiteturas de exceção
No campo da arquitetura excepcional - aquela que é possível fazer em acordo com os conceitos de produção cultural, significância e transcendência, considerada e valorizada pela mídia especializada - realizar uma síntese da produção das últimas três décadas implica escolher temas do debate cultural e social e obras que exemplifiquem esses conceitos. Naturalmente, muitos exemplos valiosos ficam fora de uma eleição orientada por objetivos ideológicos e conceituais pré-determinados. Porém, representa uma síntese dos caminhos percorridos e dos desafios a assumir para uma efetiva evolução da produção arquitetônica e urbanística nacional.
 
A força da modernidade na cultura arquitetônica brasileira perdura até hoje, e produções notáveis persistem e renovam as essências plásticas, espaciais e construtivas daquele movimento. Nas últimas décadas do Século XX, os arquitetos brasileiros consagrados internacionalmente com o prêmio Pritzker, Oscar Niemeyer e Paulo Mendes da Rocha, demonstraram sua potencialidade criativa com obras de poderoso apelo tecnológico, formal e poético.
 
O Museu de Arte Contemporânea de Niterói, projetado por Niemeyer em 1996, semelha um cálice apoiado em um promontório no mirante de Boa Viagem. A configuração ousada se destaca e complementa a impressionante paisagem circundante. O próprio edifício, ao qual se acessa através de uma rampa longa e serpenteante, é um mirante resolvido em torno de um único apoio central, característico da audácia formal e construtiva do seu criador.

 

Outro edifício de apoio único centralizado é a capela de São Pedro, localizada em Campos do Jordão, interior de São Paulo, projetada por Paulo Mendes da Rocha em 1988. Além da ousadia técnica, a obra preserva a tradição brutalista da arquitetura paulista e possui um forte caráter simbólico, que alude à memória bíblica, definido pela enorme “pedra” da coberta. Construída em concreto, pedra artificial, ela “pousa” manieristicamente acima de uma delicada pele de vidro que permite visualizar a continuidade da singular paisagem de montanha. Um espelho de água interior complementa os apelos bíblicos, ao mesmo tempo em que qualifica este projeto que concentra, com enorme poder de síntese, a energia criativa do autor com um grande componente emotivo.
 
A racionalidade técnica e construtiva se faz presente nas obras dos grandes arquitetos brasileiros formados na tradição moderna. Alguns edifícios possuem características especiais nesta escola, como o projetado em 1976 e inaugurado em 1982 por Assis Reis para a sede da Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF), localizada em Salvador. Em época de críticas ao modelo modernista universal, assim como de procura por alternativas culturais que valorizem as características locais, este edifício apela às tecnologias adequadas ao lugar (concreto, aço e tijolo), e reflete uma preocupação com as condições climáticas do Nordeste através dos sistemas de ventilação natural, seqüências de espaços sombreados e implantação acima de um grande estanque de água, com definição de um micro-clima próprio.
 
Na mesma escola de tradição moderna adaptada ao contexto de produção existem obras destacadas, como a do arquiteto carioca radicado em Recife Acácio Gil Borsoi, quem venceu, em 1990, o concurso para o projeto do Centro Administrativo de Uberlândia, no Estado de Minas Gerais. Nesta obra, Borsoi materializa sua concepção da arquitetura como construção que transmite emoção. O projeto, totalmente racionalizado e pré-fabricado em muitos dos seus componentes, otimiza processos e recursos, caminho válido para uma produção comprometida com as realidades e expectativas de uma arquitetura contemporânea acorde com as possibilidades técnicas e culturais.

Crédito: Lucas Jordano de Melo Barbosa
 
Em relação aos valores universais e permanentes de racionalização de processos, otimização de recursos, criatividade, sustentabilidade, compromisso social e consciência ambiental, o Brasil teve, na obra de João Filgueiras Lima, o Lelé, sua expressão máxima. A obra do Lelé assume uma dimensão particular no contexto da produção brasileira, especialmente os projetos dos hospitais da Rede Sarah Kubitscheck, construídos em diversas cidades nas duas últimas décadas do Século XX (foto 5). Estes projetos antecipam o debate acerca das técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de uma nação, com profundo respeito pelas possibilidades e condições sócio-culturais, contextuais, tecnológicas e ambientais.
 
Dentre as experiências relacionadas com os processos de racionalização, a obra de Joan Villà propõe a industrialização de peças cerâmicas em painéis de fabricação e montagem in situ, contribuição experimental e inovadora que valoriza uma tecnologia adaptada, simples e acessível. A contribuição destas experiências possui exemplos destacados no conjunto de residências da Universidade de Campinas, projetado com Silvia Chile em 1992 (foto 6) e no conjunto habitacional de baixa renda em Cotia, São Paulo, projetado em 2001.

Crédito: Stepan Norair Chahinian
 
A crítica à modernidade provocou, na década de ‘80, uma crise no conceito do edifício-objeto, isolado do tecido urbano. A reação a estes questionamentos provocaram projetos integrados à malha urbana, como o edifício do Centap (Centro de Treinamento e Aperfeiçoamento de Pessoal da Fundação Bradesco), projetado por Luiz Paulo Conde em 1982, localizado no Rio de Janeiro. A organização de blocos articulados em torno de um pátio alberga diversas funções tentando sua articulação com o entorno urbano.
 
A mesma crítica provocou, também, a valorização de culturas locais, com a fragmentação do pensamento centralizado e unidirecional. Expressões regionais começaram a ser consideradas como manifestações de contracultura válidas para a definição da identidade de um país rico e variado. A promoção, no contexto latino americano, de obras como a de Severiano Porto, através dos Seminários de Arquitetura Latino Americana (SAL), voltou a atenção para arquiteturas alternativas aos modelos convencionais, produzidas com materiais e tecnologias do lugar, adaptadas às condições culturais e climáticas com economia de recursos e eficiência de desempenho. Obras como o Centro de Proteção Ambiental de Balbina, na Amazônia, projetado em 1984 (foto 9), refletem a implementação de processos racionalizados com materiais da região, com resultados acertados em termos de eficiência, plasticidade e valorização das culturas locais.
Experiências com tecnologias alternativas tiveram interessantes resultados, como o caso da Residência para padres Claretianos, projetada por Affonso Risi e José Mario Nogueira em Batatais, interior de São Paulo, em 1984. A utilização exaustiva do tijolo em diversas técnicas construtivas, como abóbadas, cúpulas e lajes, criam situações diversas em torno de um pátio central.
 
No contexto das preocupações urbanísticas e ambientais, hoje presentes no debate contemporâneo, a experiência na cidade de Curitiba, com a sistematização do transporte público e valorização de espaços urbanos, foi pioneira no país e inspiradora de intervenções em diversas cidades do continente. Em relação à temática ambiental, a construção da sede da Unilivre (Universidade livre do Ambiente) por Domingo Bongestab, projetada em 1991(foto 11), resultou na primeira instituição do tipo a realizar estudos e pesquisas sobre meio ambiente e ecologia. Acorde com estes princípios, o projeto é integralmente sustentável, construído com materiais do lugar, inspirado na contracultura do aproveitamento (realizado com a re-utilização de toras de madeira) e inserido no contexto natural como edifício-passeio, que possibilita circular em torno dele, subir e contemplar a exuberante paisagem do local da implantação.
 
A problemática do meio ambiente é retomada através de outro exemplo notável: a Praça Victor Civita, projetada por Adriana Levisky e Anna Julia Dietzsch em 2006, em São Paulo (foto 12), em terreno contaminado pelas atividades de um antigo incinerador. A intervenção propõe a reflexão acerca dos desafios culturais, sociais e políticos nas grandes cidades, provocados pela degradação e recuperação ambiental.
 
O tema da residência individual estimula a realização de experiências tecnológicas, espacias e construtivas; obras-laboratório que permitem obter e melhorar resultados a partir de experiências concretas realizadas em tempo curto.
 
Dentre as experiências notáveis, podemos destacar as realizadas por Marcos Acayaba com a tecnologia da madeira. Diversos projetos, como as casas Hélio Olga de 1987 (foto 13), Baeta de 1991, e a residência do próprio arquiteto de 1996, todas em São Paulo, inserem as construções em terrenos íngremes, com respeito pela topografia e a paisagem, preservação da vegetação, geometria rigorosa e expressão da técnica construtiva.
 
Em outro contexto, a casa própria projetada por Roberto Moita em Manaus em 2001 (foto 14), mistura materiais diversos como madeira, aço, coberta metálica, alvenaria e gesso acartonado. Este processo, aparentemente heterodoxo, resulta em uma obra que preserva as tradições modernas da planta livre, da integração espacial entre interiores e exteriores, da grande coberta que sombreia a construção, com singular atrativo, inovação e identidade.
 
Na tradição do brutalismo paulista, obras como as de Ángelo Bucci perduram a claridade na definição da estrutura, as integrações entre espaços interiores, a síntese e expressão dos materiais, e incorporam percursos no interior da obra até as coberturas, que passam a ser utilizadas como ambientes da casa, assim como experiências plásticas que tiram partido dos jogos de luzes e sombras e das possibilidades sintéticas e expressivas da estrutura. A casa em Ubatuba, projetada em 2006 (foto 15), é um exemplo evidente de produção que persiste e renova a cultura da arquitetura paulista.
 
No contexto da habitação popular, as obras dos grandes conjuntos habitacionais tiveram manifestação máxima no Núcleo Habitacional do Cafundá, concurso vencido por Sérgio Magalhães e Ana Luiza Petrik em 1977 e finalizado em 1982 em Jacarepaguá, Rio de Janeiro (foto 16). Este projeto manifesta os postulados do Team X em relação à articulação de volumes adaptados à topografia mediante uma rede de circulações horizontais, em níveis alternados pela utilização de tipologias em duplex. Equipamentos comunitários, como escola, centro esportivo e comercio, transferem a idéia de cidade ao conjunto.
 
Projetos de conjuntos para habitantes de pouco nível de renda foram realizados por equipes lideradas por Demetre Anastassakys em vários empreendimentos, como a Cooperativa Cidade de Deus, em 1994, com tecnologia própria de baixo custo, que aproveita o tijolo cerâmico como componente básico do sistema construtivo. Outras experiências tiveram reconhecimento internacional, como o conjunto Prosamim I, localizado em Manaus, projetado em 2004 pela CoOperativa liderada por Luiz Fernando de Almeida Freitas (foto 17). Outros localizados em Belém, como o Vila da Barca de 2003, Liberdade I de 2008 e Liberdade II de 2009, foram realizados, assim como o Prosamim I, com o sistema construtivo Terra & teto, baseado em cerâmica autoportante e peças de cerâmica armada. Nos projetos de Belém, a CoOperativa fez os projetos em parceria com o escritório MeiaDoisNove Arquitetura e Consultoria.
 
Outra atuação no campo da habitação popular foi o programa Favela bairro, realizado pela Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro entre 1994 e 2008, que compreende a urbanização e integração das favelas à cidade. Este programa superou o preconceito histórico que considerava os assentamentos espontâneos da população mais pobre ausentes da estrutura urbana. Realizações deste tipo espalharam-se por outras cidades brasileiras. Uma ação significativa foi a intervenção da equipe liderada por Marcos Boldarini na urbanização Cantinho do Céu, em São Paulo, 2008 (foto 18), com a criação de espaços de convivência na frente de um açude que se encontrava degradada, assim como outras intervenções nas áreas públicas da comunidade.
 
No Rio de Janeiro, um conjunto de intervenções foi realizado por Jorge Jauregui na Favela do Alemão, com implantação de conjuntos habitacionais (foto 19), sistema de transporte por teleféricos, equipamentos para lazer, esportes, cultura, educação e saúde, melhoramento de espaços públicos e recuperação ambiental da Serra da Misericordia. 
 
As operações urbanísticas lideradas por Elisabete França desde a Secretaria de Habitação Popular de São Paulo permitiram convocar diferentes equipes de arquitetos para realizar projetos de qualificação urbana através da habitação social. As comunidades beneficiadas e a cidade ganharam projetos de muito interesse de equipes lideradas por Marcos Boldarini, MMBB Arquitetos, Vigliecca e Associados, Escritório Paulistano de Arquitetura, Brasil Arquitetura, Andrade Morettin, Marcos Acayaba e H+F Arquitetos, assim como o concurso de projetos denominado Renova São Paulo.
 
Héctor Vigliecca possui uma vasta trajetória no campo da habitação popular. Na atuação por encomenda da Secretaria de Habitação Popular realizou projetos como o conjunto Parque Novo Santo Amaro, 2009 (foto 20) em que incorpora condições de urbanidade e resgata situações do ambiente natural degradadas por ocupações precárias e improvisadas.
 
O crescimento das cidades em função dos interesses da iniciativa privada tem unificado as transformações com arquitetura imobiliária repetitiva e, em geral, pouco criativa. Problemas crônicos, como a falta de segurança, ausência de qualidade nos espaços públicos e imobilidade, ficam incrementados por tipologias defensivas de uso residencial exclusivo, dependentes totalmente do automóvel para funcionar. Os grandes desafios do Brasil contemporâneo passam, dentre outros, pela construção de cidades integradas e inclusivas. Propostas alternativas para o mercado imobiliário têm aparecido, timidamente, com projetos que tendem a colocar usos mistos para favorecer a apropriação dos espaços públicos, áreas sociais em contato com as ruas, assim como variedade tipológica para superar o caráter repetitivo e homogeneizante. O escritório Andrade Morettim projetou, em 2005, o edifício da Rua Aimberé de São Paulo (foto 21), sob estes conceitos. A experiência foi repetida em 2007 na Rua Fidalga, a poucos metros de outro edifício projetado, sob estes princípios, pela equipe Triptyque. O jovem escritório paulistano FGMF (Forte, Gimenez, Marcondes Ferraz) tem realizado projetos similares, como o edifício KOA.
 
Os temas relacionados com a promoção e difusão da educação e da cultura são os que resultam em projetos que determinam a evolução conceitual da arquitetura. Brasil teve vários exemplos que aportam argumentos para o debate disciplinar. A construção do complexo paisagístico, ambiental e cultural de Inhotim, em Brumadinho, Minas Gerais, é uma rara oportunidade de concentrar obras sem maiores impedimentos para desenvolver conceitos espaciais, formais, tecnológicos e de integração com a natureza. Um conjunto de edifícios destinados à galerias de exposição, dispersos na natureza dominada pelo paisagismo, expressam diferentes aproximações aos temas educativo e cultural. Dentre eles, o Centro de Pesquisas Burle Marx (foto 22), projetado em 2006 por Alexandre Brasil e Paula Zasnicoff Cardoso integra arquitetura e natureza através de um partido simples: dois corpos paralelos destinados à ateliers e biblioteca, perpendiculares a um transversal destinado à recepção, convivência, lanchonete e auditório. A estrutura racional, estritamente ortogonal, contrasta com a natureza circundante. Levemente mergulhado e acima de um lago artificial, o edifício praticamente “desaparece” no contexto natural, aparecendo apenas a coberta tratada como jardim. Uma praça auditório semi enterrada foi concebida como espaço de acesso.
 
Outra estratégia, a de aparecer para contrastar evidentemente com a natureza, foi escolhida para resolver a Galeria Adriana Varejão, projetada em 2004 por Rodrigo Cerviño Lopez (foto 23). O volume flutuante e duplicado pelo espelho de água possui uma força expressiva excepcional. O edifício pode ser percorrido de baixo para acima ou ao contrário. No percurso, diferentes sensações espaciais são criadas mediante transparências ou confinamentos em torno da sala principal, de planta quadrada, à qual se acessa por uma escadaria central.
 
No contexto urbano, obras paradigmáticas oferecem diferentes aproximações na integração com a cidade. A Biblioteca São Paulo, projetada por Aflafo e Gasperini em 2010 (foto 24), com participação de Dante Della Manna e Univers Design, constitui uma ação de cidadania que transformou o antigo e tristemente célebre presídio do Carandirú em parque urbano (Parque da Juventude, com paisagismo de Rosa Kliass), e permite a integração lúdica das pessoas com o edifico projetado para estimular o conhecimento e a cultura. Esta intervenção serviria de exemplo para outras destinadas a assegurar uma efetiva transformação social através de equipamentos culturais, estratégia exitosa nos contextos das cidades colombianas de Bogotá e Medellín. O edifício responde à concepção de caixa integrada com o contexto no pavimento térreo, com altura dupla interior que permite apreender a integralidade do espaço projetado, e luz zenital, que garante condições propícias para a leitura.
 
Outra intervenção para edifício cultural propõe uma estratégia de maior evidência no contexto de reestruturação da região portuária do Rio de Janeiro. O projeto do Museu de Arte do Rio (MAR), projetado por Bernardes e Jacobsen em 2010 (foto 25), propõe integrar dois edifícios muito diferentes em concepção arquitetônica e critérios de preservação. Um deles, eclético palacete construído em 1910, abriga salas para exposições, mantido quase intacto no seu exterior. O outro, edifício moderno de 1940, foi transformado em Escola do Olhar. Este último, com maior nível de intervenção, define a nova imagem do museu: uma superposição de laminas que evidencia a ordem rigorosa da estrutura, com fechamentos de perfis de vidro translúcido. Uma expressiva coberta ondulada integra os dois edifícios e define a imagem da nova instituição no contexto urbano.
 
Em São Paulo, o escritório Brasil Arquitetura projetou, em 2006, o edifício chamado Praça das Artes (foto 26), que articula terrenos remanescentes de uma quadra construída por edifícios diversos e variados. A proposta cria novos espaços urbanos que articulam as ruas do entorno através de suas fachadas, que abrem para três ruas. A dinâmica urbana existente ganha vitalidade com as atividades culturais ligadas à música e dança, e a volumetria homogênea em concreto aparente pigmentado em ocre e vermelho dá unidade a uma quadra de configuração caótica. A possibilidade de atravessar de uma rua para outra através do edifício cria situações urbanas ricas e inesperadas, contribuindo na qualificação dos espaços público e semi-público. O edifício reflete o conceito de fazer cidade, promovendo a cultura musical e urbana e integrando os usuários com os habitantes do lugar.
 
A arquitetura brasileira encontra-se em debate entre a produção de qualificados edifícios diluídos no magma urbano de cidades construídas por edifícios intranscendentes, e uma consciência que clama por espaços públicos qualificados, usos mistos que estimulem a vivência com civilidade e urbanidade (e com ela, a diminuição da violência), e gestões urbanas que priorizem as pessoas e o transporte público em substituição do automóvel e da locomoção individual. Por cidades inclusivas e integradas, com arquiteturas que estimulem a convivência e qualifiquem a paisagem urbana. Por cidades e arquiteturas para todas as pessoas, e não só para aquelas favorecidas pelo capital.
 
Jovens arquitetos constituem a esperança de cidades e sociedades melhores como contribuição para o efetivo desenvolvimento nacional. Jovens arquitetos que, através de concursos públicos, tem a oportunidade de demonstrar talentos e aproveitar oportunidades. Obras recentes, como a Sede do SEBRAE Nacional em Brasília, resultado de concurso vencido pela equipe integrada por Álvaro Puntoni, Luciano Margotto Soares, Jonhatan Davies e João Sodré em 2008 (foto 27), persistem a tradição brutalista em este edifício organizado em torno de um pátio que determina uma particular espacialidade interna. A preocupação com a flexibilidade e o desempenho ambiental e econômico incorpora os temas do nosso tempo. Este e outros edifícios resultado de concursos, como a Fundação Habitacional do Exército em Brasília, vencido pela equipe MGS (Macedo, Gomes & Sobreira) em 2005 (foto 28), alimentam a esperança de um país em desenvolvimento, preservando o melhor das tradições de projeto e construção, assim como uma nova consciência acerca da realidade das cidades, que estimula jovens profissionais para assumir um compromisso com a integração urbana, a inclusão social, a superação do conceito de “arquiteto estrela” e a consideração da arquitetura e do urbanismo como instrumentos para um desenvolvimento eficiente e humanizado. 

Autor: Roberto Ghione

Mini currículo: É arquiteto e diretor do IAB-PE

Fonte: http://www.iab.org.br/artigos/arquiteturas-do-brasil

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