Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: A hecatombe e o zé-ninguém

Seg, 14 de Julho de 2014 13:15



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Aquele rapaz nunca teve jeito mesmo. Sempre viveu de sonho em sonho, de comemoração em comemoração para afastar a dor de ser ninguém e de não fazer nada. Tipo do sujeito que vê a cascavel chegando e estica a perna para levar a picada. Refém dos eventos e de sua pouca ou nenhuma vontade, foi fácil transformar-se em mais uma vítima da Copa e dos seus desígnios. Passou a segunda-feira bebericando com seus parceiros, tendo o trepidante torneio de futebol como mote do folgado convescote. Findo o longo expediente etílico, mais melado que espinhaço de pão doce, tomou tropegamente o caminho de casa, uma humílima quitinete onde morava na companhia de Deus. O sono farto levou-o a um reino distante, onde era um rico paxá e voava com roliças odaliscas num sedoso tapete mágico do ano.

Seu sambado relógio interno o acordara atrasadíssimo naquela fatídica terça-feira, o corpo vestido sobre o sofá da minúscula sala, era ver um defunto. Procurou o celular, nem sinal da algema eletrônica. O cuco na parede marcava quase vinte horas. “Lai vai”, assustou-se, “papoquei com linha, carretel, calambote e tudo. Capotei mesmo. Ontem foi cana muita. E o jogo, meu Deus, como terá sido? Ganhamos ou perdemos da Alemanha?”. A ausência das luzes e dos estampidos dos fogos e dos ganidos dos cachorros era mau presságio. Passou uma água na cara amarrotada, enxaguou a boca e decidiu sair para conhecer a verdade, fosse ela boa ou má. As ruas estavam desertas, aqui e acolá alguma bandeirinha jogada fora, o que lhe apertava ainda mais o coração e aperreava o fraco juízo.


Voltou ao bar onde tomara a carraspana de véspera. Já vazio àquela altura, seu dono já começava a empilhar mesas e cadeiras quando deu pela sua presença. “Ainda está vivo? Já vai beber de novo? Égua do cabra inveterado...”. “Bota uma aí para mim, chefia. Nem vi o jogo, cheguei na mansão, apaguei e só acordei agora. Como foi a partida? Metemos ou levamos chibata?”, perguntou, ansioso. “Ah, o fofinho não soube do resultado?”, frescou o taberneiro, “Pois se sente aí que vai começar agora o vídeo do jogo. Não vou lhe dizer o placar, só posso lhe afirmar que é surpreendente. Você vai ter que ver o filme inteiro para saber o final, doido”, sentenciou, ligando a TV num canal de esportes qualquer. “Todo castigo para bêbado é pouco”, consolou-se o pobre diabo, “quem mandou dormir no ponto?”.


A narração em volume máximo que saía do televisor de tela plana contrastava com o silêncio ensurdecedor da cidade à volta do botequim. A cachaça, mesmo abemolada por gomos de laranja, sabia-lhe amarga, ele não sabia por que. O Brasil começou até bem, pressionando o time germânico, mas, logo aos 11 minutos, o grandalhão Thomas Müller, livre e desimpedido, empurrou a bola para as redes. O miserável sentiu o golpe nas tripas. Levantou-se e foi ao banheiro vomitar. O proprietário do estabelecimento só fazia rir. Quando voltou, lívido como uma folha de papel, assistiu ao segundo gol alemão, marcado por Klose, o artilheiro-mor das Copas. Outra crise e toca o desgraçado de novo para a casinha. No retorno, ultra-baqueado, não acreditava no que via: os boches já estavam ganhando de 5 a 0!


“Macho, eu pensava que era o replay do outro gol! Agora quebrou dentro!”, lamentou-se, o homem do balcão se acabando de achar graça. No segundo tempo, viu mais dois gols dos teutônicos, além do reles tento do Oscar. Na arquibancada do Mineirão, beldades, antes sorridentes, liquefaziam-se em desespero. “Sete, número cabalístico, marca doída na alma, pelas sete chagas de Cristo, e agora?”, soluçou. “O desastre é algo planejado em detalhes”, filosofou o seu algoz, “Hora de pegar o beco, que eu vou fechar”, concluiu, seco como uma lixa. Novamente ébrio, abandonado à própria sorte, o numeral misterioso rondando-lhe a ideia. A manhã achou-o na sarjeta, envolto num pavilhão nacional de plástico. De passagem, catadores de lixo com seus carrinhos, de quem também a vida sempre ganha de goleada.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/07/14/noticiasromeuduarte,3281245/a-hecatombe-e-o-ze-ninguem.shtml

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