Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Patinho Feio

Seg, 11 de Agosto de 2014 10:40



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

A Guilherme Sampaio


Oh, pobre coisa rica, quão desvalida tu és. Ninguém respeita teu precioso acervo, ninguém enxerga o valor que tens. Continuas sendo tratada como a cereja da torta: gostosinha, mas acessória e até dispensável. “Quando ouço falar em cultura, saco logo do meu revólver”, dizia Joseph Goebbels de peito aberto na chancelaria do Führer, frase esta ainda defendida com unhas e dentes por muita gente boa nesta terra de Mãe Preta e Pai João. Falsamente considerada e, sim, efetivamente desprezada, tomada por folclore barato de apresentação colegial, confundida com barulhenta macumba para turista, menosprezada como velharia de museu, ah, Cultura, quando deixarás de ser o patinho feio para virar o belo cisne que verdadeiramente és na vida brasileira?

Céleres e com o som à toda, vão os carros de propaganda eleitoral pela avenida, enchendo a tarde de Fortaleza com as propostas ocas dos seus sorridentes candidatos. Se as ideias nos campos da educação, da saúde, da habitação e da segurança são débeis ou ultra-genéricas, seria mais que um milagre ouvir dos zoadentos paredões uma menção propositiva na seara cultural, pueril que fosse. Afinal, a gente não quer só comida. Nossa fome, nossa sede são de quê? Seria impossível, para a cultura, se constituir em um elemento estruturante da agenda de um governo? Sua função, no seio de uma administração, se resumiria à realização de eventos, voláteis como os ventos? Ou deveríamos destacá-la por sua relevância simbólica, cidadã e econômica?


Parafraseando a boutade do manda-chuva nazi, Millor Fernandes afirmava que quando ouvia falar em cultura, sacava logo do talão de cheques. Sempre haverá aqueles puristas para quem arte e dinheiro são imiscíveis. Contudo, para muito além das toscas intenções de um mero projeto de poder, urge entender a cultura como um real instrumento de desenvolvimento sócio-econômico, integrado transversalmente às demais forças produtivas, gerando opulência, negócio, ocupação, renda, oportunidades. Por quê? Evidente, cara-pálida: porque sim, porque é necessário, porque é inadiável, porque não há outro jeito. Mais: a cultura é um direito social, “uma necessidade humana básica”, como bem disse Juca Ferreira, ainda insustentável, mas rica e diversa.


Converter a natureza em artefato exige saber e fazer, engenho humano que todos têm, mas que nas mãos de uns poucos transforma-se em epifania. Esse ofício, maior que o viver, como resmunga Ferreira Gullar, se manifesta mediante uma multidão de expressões, tanto autônomas quanto entrelaçadas, as quais revelam a que tribo pertencemos, servindo à construção de laços de identificação e à diferenciação de indivíduos, grupos, nações. Diante dos meus olhos, como uma gigantesca escola de samba, desfila a cultura nacional, com sua exuberância, sua possibilidade latente de transmutação social, sua potência inequívoca, Chico Anysio em filme de Glauber Rocha, com música de Villa Lobos, roteiro de Machado de Assis e cenário barroco de Oscar Niemeyer.


No nosso caso, ante a estarrecedora constatação de que o Ceará é um ilustre desconhecido para seus próprios filhos e filhas, cabe indagar: O que é a cultura cearense, material e imaterial, erudita e popular? Quais as linguagens através das quais se manifesta? Em que medida esse patrimônio carece de apoio e zelos de preservação? Como fazê-la conhecida, reconhecida e valorizada? Como elevá-la à condição de vetor de desenvolvimento regional? Que papel a tecnologia joga em sua produção e promoção? Qual a participação do Estado e da sociedade na elaboração de uma política específica para si? É responder estas questões ou, infelizmente, aceitar a grosseira paráfrase de Olavo de Carvalho: “Quando ouço falar em cultura, saco logo do meu rolo de papel higiênico”.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/08/11/noticiasromeuduarte,3295760/patinho-feio.shtml

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