Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Palimpsesto

Ter, 19 de Agosto de 2014 15:45



A Joaquim Cartaxo
 

Ninguém deu fé quando aquele homem alto e magro, nu da cintura para cima e usando bermuda jeans rasgada, postou-se silenciosamente diante de um amplo muro na Avenida da Universidade, em plena quentura do meio-dia. Os passantes, tentando fugir da canícula, sequer desconfiavam da gana de saber gravada nos olhos daquele sujeito, fixos naquele extenso paramento. A chave para a compreensão de uma trajetória histórica, em toda a sua complexidade, pensava, repousava no cerne daquela muralha. Tarefa digna de um louco, alguém poderia pensar; para ele, algo mais que necessário, que precisava ser feito a todo custo, um imperioso alumbramento. Tendo o sol por principal testemunha, tirou uma espátula do bolso e atacou o grosso reboco do paredão.

Escolheu como alvo predileto de sua inquietação justamente o ponto da áspera superfície onde foram colados panfletos de propaganda de dois candidatos a governador. A mão desarmada ajudava a que portava a ferramenta, num mister obstinado de descoberta. Logo o desbaste alcançava uma área maior, revelando aos poucos os dizeres de uma campanha política de passado recente, na qual os atuais litigantes eram parceiros e andavam lado a lado. A lida calada e persistente do arqueólogo improvisado, seus dedos e palmas sujos de caliça, começou a despertar o interesse dos transeuntes daquela via, tão conhecida por suas bandeiras e passeatas vermelhas. Um grupo passou a apreciar seus ágeis movimentos; num instante, tinha muita gente aos seus pés.

 

"Logo o desbaste alcançava uma área maior, revelando os dizeres de uma campanha política de passado recente, na qual os litigantes eram parceiros"

 

Sua faina não conhecia intervalo ou termo. Em seu afã de exímio raspador de parede, esta agora quase que totalmente dominada, exibia paulatinamente a doidice da política alencarina, camada por camada. Nessa etapa, mostrava as letras garrafais da disputa havida na última eleição para o Senado, na qual quem votava nestes aqui não sufragava aquele ali. Noutro setor, um tanto mais profundo na epiderme do muro, o anúncio do total apoio e alinhamento da família todo-poderosa ao tri-governador, posteriormente rejeitado por ela mesma. Suas prospecções eram implacáveis: a traição, inquestionavelmente, era o motor de todo esse processo, visível no abandono do candidato do partido em favor de outro pelo prócer máximo ou na rasteira dada nos coronéis.

 

A artéria, a essa altura, já havia se tornado um frege. Pessoas, professores e estudantes em sua maioria se espremiam entre o meio-fio e a veloz passagem dos veículos para assistir ao frenético resgate de um patrimônio. Nesse ponto, o restaurador trazia a lume as derrapadas ideológicas das agremiações de esquerda, evidentes nos slogans contra o Plano Real e as Diretas Já! e favoráveis à aliança dos socialistas com o capital. A turba caiu na risada quando surgiu o grafite, ainda fresco, de um pinguim sobre um poste. “Teria sido Banksy?”, perguntavam, curiosos. Palavras de ordem foram proferidas em louvor de uma pichação sobre o fim do dinheiro. Aplausos dados ao painel “Abaixo a ditadura!” avivaram memórias, ápice daquele exercício de regressão.

 

"A artéria, a essa altura, já havia se tornado um frege. Pessoas se espremiam entre o meio-fio e a veloz passagem dos veículos para assistir ao resgate de um patrimônio"

 

Mas aquela era uma parede velha, espessa, de muita e variada história marcada em sua carne de tijolo e cal. O magrelo então descascava um plano onde se viam lemas tendentes à União Pelo Ceará, à liberdade ao Partido Comunista e ao passe livre, penetrando cada vez mais fundo no passado, quase alcançando o emboço. Os gestos mais enfáticos do performer, dir-se-ia já um guru, todo coberto de suor e poeira, eram acompanhados pelos gritos da atenta plateia, num espetáculo tribal. A Polícia chegando em suas reluzentes viaturas pôs um final melancólico ao show. Antes de ser algemado e levado preso por incitamento à desordem no espaço público, jogou seu instrumento aos fãs, troféu por que valia se engalfinhar, lembrança de um tal anônimo herói.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/08/18/

noticiasromeuduarte,3299728/palimpsesto.shtml

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