Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Profissão de risco

Seg, 25 de Agosto de 2014 10:10



A Zé Renato Cirino Nogueira

 

Era um arquiteto que ainda desenhava à mão. Dono de um pequeno escritório, onde praticamente trabalhava sozinho, elaborava com esmero projetos de pequenas construções. Há décadas, concluíra seu curso com louvor, sendo apontado à época como uma das grandes promessas do métier. Contudo, o tempo, ingrato, mostrou-lhe seu devido lugar: de origem humilde e sem os tão preciosos contatos com gente de dinheiro ou influente, sobraram-lhe apenas as singelas encomendas. Mesmo assim, não reclamava e procurava fazer o melhor possível. Comparava-se a um “dentista de bairro”, a quem não faltava trabalho, mas sempre de escala diminuta. “Que importa”, dizia, “o importante é colocar a arquitetura a serviço do bem estar das pessoas, o resto é paisagem”.

 

No meio da tarde de uma quarta-feira cinzenta, toca a campainha do seu estúdio na Praia de Iracema. Ao abrir a porta, depara com uma mulher que nunca vira antes. “Boa tarde, posso entrar?”, perguntou ela, já adentrando o recinto sem tomar conhecimento da resposta afirmativa ou negativa do seu interlocutor. “Você já entrou, pois não”, disse o homem com um sorriso manso. “Desculpe-me”, devolveu-lhe a dona, de uma beleza seca e difícil, já penetrando no salão do atelier, “é que quando tenho uma meta na cabeça costumo ser objetiva”. Ele indicou-lhe uma cadeira, do outro lado da ampla prancheta, coberta de papéis pejados de croquis. “Como você desenha bem”, os dedos longos sobre as folhas. “É a minha linguagem, o grafite grava a ideia”.

 

“Seguinte: herdei um terreninho aqui perto e quero construir uma casa para mim. Só eu, meus livros, discos e gatos. Um casal amigo, cliente seu, me recomendou você. Pode ser?”. No dia seguinte, cedo da manhã, lá estavam os dois vendo o minúsculo lote. Inventivo, rápido e bom de traço, em poucas horas, após a visita, já tinha esboçado algumas alternativas. Recebeu-a no fim do expediente para um café e a apresentação das soluções. Os negros olhos dela viajavam nos desenhos, tão despojados quanto expressivos. “Todas são ótimas, mas gostei mais da proposta que aproveita a sombra do sapotizeiro como extensão da área de estar”, elogiou. “A próxima etapa é o estudo preliminar, desenvolver, dar corpo à que você escolheu”, falou, recompensado.

 

Novamente solteiro, recém separado e sem filhos, sua agenda agora era toda sua. Mesmo sem ter acertado o preço global da empreitada, o que para ele era um absurdo, pôs-se a empreender com gosto o passo seguinte. Alguns dias depois, o modelo estava pronto. As pranchas manufaturadas, com plantas, cortes, fachadas e perspectivas delineadas com apuro, eram arte da mais fina essência. Na sessão de apresentação, todos esses adjetivos mostraram-se acanhados face aos muitos predicados que ela, emocionada, atribuiu ao plano da residência e ao seu autor. “Você conseguiu, você entendeu o que eu quero como moradia e da forma mais bela, mais sensível, mais pungente”, o olhar lacrimoso e gentil, dir-se-ia mais que grato, enlevado, encantado, até seduzido.

 

Na sequência, era conferir uma roupagem executiva àquele belo desígnio. Para acelerar a montagem, como costumeiramente fazia nesse ponto, recorria a auxiliares com suas ferramentas computacionais. Logo, o caderno de obra se completara. Qual não foi a sua surpresa quando, na entrega do produto, viu aquele rosto crispado e daquela boca sair tal impropério: “Por que você fez isso comigo? Por que destruir o meu sonho assim? Esses desenhos horrorosos, em preto e branco, cheios de números e símbolos e, ainda mais, feitos no computador?! Você é um monstro!”. Aos prantos, saiu batendo a porta com estrondo para nunca mais. Abatido, o arquiteto deixou-se cair em seu assento, sem perceber o quão insondável é a relação entre a coisa e sua representação.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/08/25/noticiasromeuduarte,3303104/profissao-de-risco.shtml

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