MINHA CASA MINHA VIDA E REVITALIZAÇÃO DOS CENTROS URBANOS
Em 2020 ocorrerá no Rio de Janeiro o Congresso Mundial de Arquitetura, o que nos leva a lembrar que o Brasil, um dos centros mundiais de arquitetura no Século XX, é hoje um deserto de mediocridade arquitetônica. Chamo atenção para dois grandes fracassos; o desastre arquitetônico dos conjuntos de habitação popular, feios, pavorosos, sem nenhum sinal de arte ou graça, sem árvores, sem jardineiras, sem serviços para os moradores, sem lazer para crianças, apenas paredes de frio concreto que pelo seu aspecto deprimente logo entrarão na fase de degradação e de nenhuma conservação ou embelezamento porque não representam comunidades de convívio humanizado, apenas um empilhamento de paredes.
As antigas vilas operárias do inicio da industrialização, como a Vila Maria Zélia de Jorge Street, a Vila Itororó, as célebres vilas da Rua Caetano Pinto em São Paulo, tinham cara e alma, eram coisas vivas, objeto de filmes e livros, novas famílias se formavam nesse convívio social.
Compare-se com outro conjunto de habitação popular dos anos 50, o conjunto Marquês de São Vicente na Gávea, uma obra de arte desenhada pelo célebre Affonso Reidy, um conjunto lindo, humanizado, de amplo convívio social, que após 60 anos continua bonito e agradável.
A culpa da má arquitetura dos conjuntos habitacionais brasileiros, que se veem às centenas nas rodovias Bandeirantes, Imigrantes, Anhanguera é de quem financia sem exigir um mínimo de qualidade arquitetônica, o financiador tem o poder, é a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL que deveria condicionar o financiamento de conjuntos à boa arquitetura, QUE NÃO FAZ MAIS CARA A CONSTRUÇÃO, pode até baratear pela aplicação da inteligência ao projeto.
Grande parte do descaso arquitetônico tem a responsabilidade das construtoras que estão com lucros exorbitantes em um setor de habitação social que não deveria ser uma mina de ouro. A MRV, maior construtora de habitação popular do País, declara em seu balanço de 2017 um lucro de R$ 653 milhões, tendo entregue 36.229 habitações, o que significa um lucro de R$18 mil Reais por casa entregue. No mesmo balanço declara que seu gasto total em mão de obra e encargos sociais foi de R$ 621 milhões, o que representa R$ 17 mil por habitação entregue. Quer dizer, o LUCRO LÍQUIDO POR CASA foi maior do que o custo de mão de obra, INSS e todos os encargos trabalhistas, o que não é normal e nem lógico. Esses números demonstram que aquilo que não se gasta em boa arquitetura e boa guarnição nos conjuntos vira lucro liquido excessivo de 18 mil Reais por habitação popular, tudo só possível pelo financiamento da Caixa Econômica Federal, que tem todos os instrumentos para exigir critérios de maior qualidade arquitetônica nos conjuntos de moradia popular.
O outro fracasso é na recuperação e revitalização de centros urbanos em decadência, algo que ocorre em todas as grandes cidades brasileiras, o Brasil não acompanhou os movimentos de revitalização de centros como se viu em Buenos Aires, Londres, Berlim, Lisboa, Bogota.
O centro de São Paulo tem impressionantes níveis de degradação com o abandono de prédios históricos dos anos 20, 30 e 40, que poderiam ser perfeitamente renovados e valorizados.
Algumas áreas degradadas de São Paulo com grande número de bons prédios:
1. Praça das Bandeiras e Av. Nove de Julho até a boca do Túnel 9 de Julho.
2. Centro velho, antiga zona bancaria, da Praça da Sé até o Anhangabaú.
3. Avs. Rangel Pestana e Celso Garcia no Brás.
4. Avs. Prestes Maia e Tiradentes até a entrada da Marginal.
5. Av. do Estado, toda ela, a mais extensa avenida de SP.
6. Av. dos Bandeirantes, nova e já degradada, com centenas de casas abandonadas.
7. Partes da Av. Santo Amaro, quarteirões abandonados.
8. Av. São João e Praça Marechal Deodoro, entorno detonado pelo Minhocão.
9. Pça. da República e Av. Duque de Caxias, zonas da cracolândia.
10. Rua Augusta da Av. Paulista em direção aos Jardins, mais de cem lojas fechadas.
Apenas exemplos, há muito mais zonas degradadas. Todas as áreas apontadas têm todos os equipamentos urbanos, um enorme investimento já realizado, no entanto se prefere abrir novas áreas sem infra estrutura do que recuperar áreas antigas já equipadas, é uma característica bem brasileira. Chamo a atenção para a cultura argentina de retrofit de prédios, recuperação de bairros, os argentinos são mestres nessa arte que exige cultura e respeito à historia. É impressionante a abundância de sacadas e floreiras nos prédios de apartamentos de Buenos Aires, de todas as classes sociais, as floreiras dão graça e charme a prédios que sem esses detalhes seriam feios, no Brasil floreira em prédio é uma raridade, deve ser porque dá trabalho , brasileiro adora concreto puro, liso e feio, chão de granito e abomina jardins prefere tudo concretado porque não tem poeira e é fácil de lavar, prédios com bom espaço térreo não tem um metro de terra, só granito e concreto, um insulto à natureza.
Em Nova York e Londres os prédios de época, revitalizados, valem muito mais do que prédios novos de aspecto convencional. Os apartamentos antigos em torno do Central Park em Nova York valem uma fábula exatamente porque são prédios icônicos, de época, dos anos 20 e 30, há uma clara percepção do valor da arquitetura que simboliza uma época. Em Dallas, no bairro dos ricos, Beverly Wilshire, as casas lindas são todas de época, dos anos 20 e 30, também em Los Angeles em Beverly Hills, em Londres nem se fala, Belgravia, Mayfair e St.James Square são lindos por causa de suas mansões antigas, em Paris os apartamentos de época na Avenue Foch são caríssimos exatamente pela arquitetura antiga preservada.
Nos bairros Jardins em São Paulo as casas de época vendidas são imediatamente derrubadas e no seu lugar se plasma um bunker horrendo de concreto sem janelas, lembrando uma caixa d´agua, um bingo ou uma churrascaria de rodovia, tudo de péssimo gosto, um insulto à cultura e à urbanidade, casas de estilo são postas abaixo para subir caixotões horrendos. Onde está a arquitetura brasileira, leve, harmônica com o ambiente tropical, que marca a arquitetura dos anos 30, 40, 50 ou 60, ganhadora de evidência mundial, com nomes emblemáticos objeto de compêndios que fazem balanços de uma época? Os novos ricos brasileiros não têm amor à tradição porque não tem passado e nem cultura, camelôs enriquecidos não absorveram o verniz do bom gosto, algo que depende de um refinamento que vem da elevação do espirito.
Os prédios de escritório no Brasil são hoje réplicas da arquitetura de Chicago, uma das cidades de pior clima do planeta, nossos prédios não agregam a vantagem do clima ameno, não interagem com a luz e com o ambiente, requerem ar condicionado permanente com enorme desperdício de energia, exigem iluminação artificial forte mesmo com o sol a pino.
Uma das máximas da boa arquitetura é incorporar o entorno, aproveitando as vantagens do clima e do meio ambiente. Estamos desde a década de 70, especialmente em São Paulo, importando conceitos e ideias estrangeiras, da arquitetura de Nova York, nem sequer aproveitarmos uma arquitetura mais leve, como a da Califórnia ou da Espanha. Nossos arquitetos estão viciados nas torres de vidro do clima frio que hoje recheiam a Avenida Faria Lima em São Paulo, não se vê nada de arquitetura de inspiração colonial , barroca ou modernista de caráter brasileiro autêntico, pode-se modernizar estilos revigorando a tradição clássica com toques de modernidade, nisso exatamente está a arte do arquiteto.
Fomos inovadores mundiais como no prédio do Ministério da Educação no Rio e hoje não inovamos em nada, viramos reles copistas de soluções do Hemisfério Norte gelado.
A geração de Niemeyer, Carmen Portinho, Affonse Reidy, Rino Levi, David Liebeskind, Jurandir Artacho Jurado (que nem era formado em arquitetura), Grigory Warchawichik, Paulo Mendes da Rocha, os irmãos Roberto, Jorge Wilhelm, Burle Marx, Lina Bo Bardi, Villanova Artigas, dão ao Brasil a categoria de pais estelar na história da arquitetura moderna, destacado como um dos maiores centros mundiais de arquitetura, onde estamos hoje com esses conjuntos habitacionais que parecem campos de concentração e com centros urbanos arruinados?
É claro que esses desatinos NÃO são culpa de arquitetos individuais porque dependem de politicas publicas além da arquitetura, MAS os arquitetos podem se posicionar, podem expor seus pontos de vista, podem pressionar através de seus órgãos de classe como o IAB.
Renovação de áreas urbanas degradadas é uma tarefa dupla, para o poder público e para a iniciativa privada. O investimento pode e deve ser privado, mas o incentivo e a coordenação dependem de politica publica, assim foi em Buenos Aires em Puerto Madero e em Londres no Canary Wharf, assim é na maioria dos projetos de revitalização bem sucedidos.
O poder público dá incentivos fiscais ou de outorgas que têm toda a lógica porque uma área degradada não gera imposto algum, recuperada volta a ser base de arrecadação. É muito mais lógico e de interesse público incentivar áreas decrépitas do que dar outorga para se erguer prédios cada vez mais altos, como se faz em São Paulo, mais área construída vertical gera mais problemas que soluções, mais tráfego, mais pressão sobre serviços, enquanto áreas renovadas representam recuperação de capital público já investido em zonas que têm todos os equipamentos urbanos, geram mais receita do que despesa para o poder público.
A arquitetura entre todas as artes é a que mais interage com o dia a dia da população, que mais tem a ver com a harmonia das comunidades, boa arquitetura melhora o humor da população e ajuda a suportar outros problemas. O Brasil não pode perder esse capital de talento que nos distinguiu no Século XX e que parece se escoar entre os dedos da mediocridade que assola este Pais nos últimos anos.