Nota de Pesar e memória: Demetre Anastassakis (1948-2019)

Seg, 29 de Julho de 2019 15:30



 

Perdemos um arquiteto talentoso, inovador e defensor da arquitetura e urbanismo inclusivos

 

O Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (CAU/BR) manifesta seu pesar com a morte do arquiteto e urbanista Demetre Anastassakis em 27 de julho. Seu extenso trabalho no campo da Habitação Social seguirá como referência na Arquitetura e Urbanismo no Brasil e no mundo. Sempre criativo, inovador e empreendedor.

 

Nosso colega deixou um legado que inclui o Conjunto São Francisco, em São Paulo, o projeto Novos Alagados, em Salvador, o Moradas da Saúde e a reurbanização do Conjunto da Maré, no Rio de Janeiro, como parte do programa Favela-Bairro – do qual foi um dos idealizadores. Este último trabalho foi exposto na Bienal de Arquitetura de Veneza.

Reurbanização do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro

Demetre Anastassakis nasceu em Atenas, na Grécia, e veio para o Brasil aos oito anos de idade. Formou-se pela Universidade federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional. Fundou seu escritório próprio, liderou o coletivo Co.Opera.Ativa, participou de inúmeros concursos e foi um dos criadores do bloco cerâmico estrutural, espécie de tijolo que substitui o cimento e fácil montar – ideal para mutirões de construção.

Moradas da Saúde, no Rio de Janeiro

Participou ativamente da política profissional. Atuou como ex-presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) e do IAB-RJ, e também como vice-presidente do Sindicato Nacional de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco) no Rio de Janeiro. Representou o IAB no Conselho das Cidades. Em 2006 recebeu o Prêmio de Arquiteto do Ano da Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas (FNA).

Como presidente do IAB-RJ, ajudou a elaborar com o secretário municipal de Urbanismo, Luiz Paulo Conde, o Programa Favela-Bairro, que completa agora 25 anos desde seu início. Era secretário de Habitação, na época, o arquiteto Sérgio Magalhães, Como presidente do IAB Nacional, ajudou na construção do Conselho de Arquitetura e Urbanismo. Também promoveu os Concursos do Rio-Cidade.

Demetre Anastassakis era um exemplo de vanguardismo, talento e coragem em nossa profissão. Sentiremos sua falta e nos apoiaremos sempre em suas lições. Oferecemos nossos sentimentos e solidariedade à companheira, colega Cláudia Pires, aos filhos, demais familiares e aos amigos.

Mutirão do Conjunto São Francisco, em São Paulo

 

ALGUNS PROJETOS

O Complexo da Nova Maré (1993) destinou-se a abrigar moradores de antigas palafitas da região da baia da Guanabara. O projeto de Novos Alagados (2003), em Salvador buscou soluções diferentes à remoção compulsória das ocupações inadequadas em assentamentos precários, onde vivem milhares de famílias, mas a sua integração urbanística como suporte para o desenvolvimento social e para a melhoria das condições de habitabilidade destas comunidades.

O conjunto habitacional Jardim São Francisco (Setor VIII) foi resultado de um concurso nacional destinado à construção de habitação de interesse social no município de São Paulo no ano de 1989. A equipe vencedora, coordenada pelo arquiteto Demetre Anastassakis, buscou soluções inovadoras para os espaços internos da unidade habitacional, bem como na configuração dos espaços públicos. O conjunto foi erguido por mutirão.

O arquiteto também atuou em planejamento urbano, consultoria imobiliária e planos diretores para prefeituras, entre elas Nova Iguaçu, Paracambi, Nilópolis, Magé e São João de Meriti. Foi professor na USU e na UFJF. Ele estava internado no Hospital Português, no Rio Comprido.

 

ARQUITETURA INCLUSIVA

Demetre, muitas vezes citado como “arquiteto dos pobres”, por causa de seu foco permanente na problemática da habitação para a população de baixa renda, defendia maior espaço para os arquitetos e urbanistas atuarem nesse campo. “O Rio de Janeiro é uma cidade com grandes áreas de aterramento, Manguinhos, Flamengo e Vigário Geral são alguns exemplos disso. Os governantes deixaram as pessoas construírem moradias nessas ‘não cidades’. E sempre tem gente querendo culpar a população por morar nesses locais. O que se precisa é fortalecer a implementação de programas de assistência técnica popular. As pessoas fazem seus ‘puxadinhos’ sem critério. Essa assistência auxilia para a construção com o mínino de segurança. Essa é uma forma de prevenir a construção insegura e em áreas de grande risco. Assim podemos prevenir grandes tragédias.”

Demetre Anastassakis também criou seus próprios trabalhos, sem esperar encomendas. Esse lado “incorporador” levou ao surgimento do Condomínio Vila Valverde, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, concluida em 2018, e anteriormente o Moradas da Saude (onde morava), que antecipou a regeneração da região vizinha ao porto do Rio de Janeiro. Durante a II Conferência Nacional de Arquitetura e Urbanismo, promovida pelo CAU/BR em 2017, ele convocou arquitetos de todo o Brasil a buscarem terrenos disponíveis, movimentos sociais e empreiteiras para fazer as habitações de interesse social. “Arquitetos podem fazer um prédio sem esperar governo nenhum. O governo não empreende, só cria as condições. Neste caso, as condições estão postas. Tem bilhões disponíveis do FGTS, e a gente não pega. Vamos começar”.

O arquiteto fazia a mesma proposta em relação às ações de Assistência Técnica em Habitação Social. “As pessoas ficam esperando regulamentar a Lei de Assistência Técnica no estado, no município. Aloca recurso e vamos em frente. Não tem que esperar uma lei estadual para cumprir uma lei federal, isso é uma burrice”, disse.

Em 2015, às vésperas do lançamento da terceira fase do programa Minha Casa Minha Vida, Demetre defendeu uma flexibilidade na tipologia das habitações para atender as diferenes necessidades das famílias. “Poderia ser mais maleável. Se o sujeito quer pagar por mais um quarto, por que não? Se outro prefere um quitinete no centro, por que não?”. Também dizia que as construções deveriam ficar o mais próximo possível dos centros urbanos, com mais facilidade de acesso a transporte, educação, saúde e outros serviços públicos.

Demetre defendia com vigor suas ideias e princípios. “Nasci na Grécia e tenho orgulho da dialética. O importante é o diálogo. Tenho opiniões fortes. Dialogo até com o capeta. Fui preso e dialoguei com o torturador. […] Não é vergonha ter opiniões fortes que podem mudar, eu não posso é ter opiniões fracas.”, disse em 2004 em entrevista à revista Projeto.

 

REPERCUSSÃO

O arquiteto faleceu no Rio de Janeiro, no Hospital Português do Rio Comprido, onde estava internado, lutando contra uma isquemia no aparelho digestivo. A despedida ocorrerá em velório a ser realizado no dia 1º de agosto, de 8 às 12hs, na sede do IAB (Beco do Pinheiro, 10, Flamengo, Rio de Janeiro). A cerimônia de cremação acontecerá no mesmo dia, reservada aos familiares.

Em nota, o presidente nacional do IAB, Nivaldo Andrade, lembrou que “em diversas reuniões do Conselho Superior do IAB, assim como em audiências e debates públicos, Demetre se emocionava ao defender, com energia e vigor, seus valores e ideias. Contudo, Demetre era, ao mesmo tempo, doçura e abraços com aqueles com quem, poucos minutos antes, discutia fervorosamente. O “Grego” era puro coração, sem que isso fosse contraditório com a lucidez dos seus argumentos”.

“As opiniões fortes, a sagacidade, a generosidade e o otimismo de Demetre farão muita falta ao IAB, à arquitetura brasileira e a bandeiras como o Direito à Cidade e à Moradia Digna, especialmente na delicada conjuntura política e econômica na qual se encontra o nosso país”, completa outro trecho da nota. 

“Arquiteto e urbanista de projeção nacional, Demetre apresentava uma grande coerência entre o que ele falava, o que ele acreditava, e o que praticava no dia a dia”, afirmou o presidente do CAU/RJ, Jeferson Salazar.

Para o arquiteto e urbanista Wilson Andrade, segundo vice-presidente do CAU/BR, o falecimento de Demetre Anastassakis foi uma grande perda para a sociedade. “Demetre deixa marca no ofício do arquiteto e urbanista, preocupado com o bem estar das populações mais pobres perseguiu com garra propostas de ocupação de áreas centrais para habitação social. Um olhar humano para as cidades e seu povo”.

“Era famoso pelo discurso em prol do ‘Direito à Cidade’ e gostava de propor soluções para, no dizer dele, viabilizar habitação para o pobre nas áreas com infraestrutura. Perdemos um arquiteto talentoso, mas sobretudo um vigoroso militante do urbanismo inclusivo. Fará muita falta e deixa saudades”, escreveu o conselheiro federal pelo Rio de Janeiro, Carlos Fernando Andrade.

Também ex-presidente do IAB nacional, e dedicado à Arquitetura Social, o arquiteto e urbanista Gilson Paranhos lamenta a morte do colega: “Enorme, briguento, defensor radical de suas convicções e inteligente, muito inteligente. Assim, num primeiro momento, Demetre assustava quem chegasse na hora do embate de idéias no IAB. Até que daí a um minuto ele começasse a chorar, chorar mesmo, assim como os humanos, falando dos amigos ou com os amigos. Pronto, essa interrogação leva a uma pesquisa sobre sua trajetória e você assusta novamente com sua obra e a dimensão de seu profissionalismo. Defensor dos direitos dos mais pobres, o “Grego” é querido, fraterno, enorme e chorão, é e não vai deixar de ser pra nós”.

Ex-presidente do CAU/BR, Haroldo Pinheiro diz que a perda inesperada do amigo foi muito triste “Demetre Anastassakis era um arquiteto talentoso e combativo na defesa do direito de todos à boa arquitetura. Ele foi atuante até o fim: na prancheta, nas palestras, nos debates; sempre otimista, firme e propositivo, fazendo jovens amigos e mantendo antigos admiradores. Isso é o que conta. Merece todas as nossas homenagens”.

Cicero Alvarez, presidente da FNA (Federação Nacional dos Arquitetos e Urbanistas) afirma que a morte de Demetre Anastassakis representa “uma grande perda para a arquitetura e urbanismo no país e para a luta por moradia digna para todos. Ele fará muita falta”.

 

DESPEDIDA DE BETE FRANÇA

Querido amigo Demetre,

E agora, com quem debater sobre as questões de habitação social nesse nosso país de incertezas? Em décadas de amizade, às vezes concordávamos, em outras discordávamos. Como é comum entre amigos que se respeitam.

Mas sempre e em primeiro lugar estava a admiração pela tua garra e pela crença que sim era possível fazer bons projetos de habitação social mesmo nas condições mais adversas. Nossa amizade de décadas, principalmente nos caminhos do IAB, se estendiam pela admiração pelo teu trabalho desde os tempos da CoOpertiva. Daí o convite para apresentar o projeto dos Novos Alagados em Salvador, na exposição que organizamos no Pavilhão Brasileiro durante a 8. Bienal de Arquitetura de Veneza. Tempos em que a urbanização de favelas ganhava escala no Brasil e os arquitetos mostravam ao mundo como a profissão se destacava na busca de tornar as cidades mais inclusivas e igualitárias.

Depois, em 2012, veio a publicação São Francisco: novos bairros de São Paulo. Lembro a emoção que sentiu aos ser convidado para relatar a experiência do mutirão e mais ainda de revisitar a obra e encontrar os moradores felizes com suas moradias construídas há mais de uma década. Dessa visita resultou um belo texto publicado no livro que você assinou com o Pedro Cascon: ‘Nos causou grande impressão, 20 anos depois, a pequena quantidade de modificações, mesmo assim feitas com respeito, grande respeito, na maioria dos casos. O pedaço do novo bairro terá deixado uma lição, um legado?’…..’Com emoção e orgulho: talvez ainda não tenhamos a dimensão real do que foi ali proposto e realizado…’

E é com muita emoção e orgulho que tenho a certeza que o legado que você deixa para as futuras gerações será o de acreditar que a boa arquitetura deve sempre prevalecer e que através dela podemos sim mudar as cidades, podemos romper a barreira da desigualdade e trazer dignidade aos bairros mais precários.

Meu caro amigo, essa tua partida prematura vai nos deixar um pouco órfãos. Mas seguiremos buscando fazer jus ao teu legado. Saudades!

Bete França, arquiteta e urbanista, atua em habitação social

E mais:

 

Clique no vídeo abaixo para rever, a partir do minuto 56, a participação de Demetre Anastassakis na II Conferência Nacional de Arquitetura e Urbanismo “Todos dos Mundos” promovida pelo CAU/BR, no Rio de Janeiro, em 2017, preparatória do 27o. Congresso Internacional de Arquitetos UIA2020RIO.

 

Clique no vídeo abaixo para rever, a partir do minuto 32, a participação de Demetre Anastassakis no Seminario Nacional de Política Urbana promovido pelo CAU/BR e pelo IAB, em São Paulo, em 2018, origem da Carta Aberta aos Candidatos nas Eleições de 2018, “Nossas Cidades pedem Socorro”.

 

 

Veja também:

TV Brasil exige reportagem sobre “A arquitetura que nos une” (inclui entrevista com Demetre Anastassakis sobre o projeto Novo Alagados hoje)

“A luta pela criação do CAU está em primeiro lugar” (entrevista de Demetre Anastassakis de 2004 para a revista Projeto)

Demetre Anastassakis: empreendedorismo do centro do Rio de Janeiro até Nova Iguaçu (entrevista para a revista Projeto, dezembro de 2018)

 

Matéria de CAU/BR.

 

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