Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Outubros de Francisco

Seg, 07 de Outubro de 2013 09:15



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Por motivo da cura de uma moléstia que eu, menino destituído de anti-corpos, contraíra, mamãe havia feito uma promessa ao poverello de Assis.

 

À Caio Napoleão

Há muitas luas e sóis, num outubro abrasador como este, cheguei esbaforido do Colégio Cearense declarando como feriado nacional o período de meio-dia até a meia-noite daquela sexta-feira. Já me livrando da farda e dos livros e imaginando a farra de estar perdido no espaço do túnel do tempo, ouvi a voz de mamãe no corredor: “Para adiantar o serviço, vá logo se assear. Quando terminar, vista a veste que está em cima da sua cama”. Pensando ter ganho a tão ansiada calça Topeka modelo Saint-Tropez, qual não foi a minha decepção ao divisar sobre o leito uma roupa tosca, comprida e marrom, na verdade um hábito franciscano. “Mãe, que diabo é isso?”. Minha genitora, mulher severa, retrucou: “Respeite São Francisco, cabra safado, que nós vamos a Canindé!”.

E agora? Por motivo da cura de uma moléstia que eu, menino destituído de anti-corpos, contraíra, mamãe havia feito uma promessa ao poverello de Assis a ser paga por mim na Basílica da Cidade da Fé. “Arre ema, mamãe, logo hoje que eu tenho tanto dever pra fazer...”, negociei. “É muito bonito pra tua cara, né, sem-vergonha? Quando estava coberto de ferida, nem se mexia no fundo da rede. Agora que está aí, todo lampeiro, nem se lembra de agradecer a quem lhe curou, né, ingrato?”. “Mas é injusto, a promessa é da senhora...”, argumentei, em vão. “Quero nem saber, marche pro banheiro e avie. Seu Tio Eduardo vai passar aqui já, já. Se você não estiver pronto em cinco minutos,,,”. Tomei o banho mais revoltado do mundo, minha raiva mordendo o sabonete.


Asseio tomado, traje vestido, sandálias calçadas, lá fui eu, São Francisco dos pobres, com minha mãe e meu tio, cumprir meu mais que aborrecido calvário. Na saída, a fina zombaria dos meninos vizinhos: “Vai, feridento!”, “Reza uma Ave-Maria por nós, leproso!”, “Fica por lá mesmo, Zé-curuba!” e outras joias da molecagem da Base Aérea de então. “Quando chegar lá, faça uma oração para cair a língua desse magote de fidumaégua...”, recomendou meu tio, ao volante de sua Rural Willys 1958 verde-e-branco. Rodando pela BR-020, o carro sem ar condicionado, o vento quente e seco na cara, os romeiros caminhando mansos pela beira da estrada. “Devia dar graças a Deus por ir de carro...”, disse mamãe, seus olhos verdes mirando a paisagem cinza de Caridade.

Canindé era uma nuvem de poeira e calor, um formigueiro humano da cor do chão barrento, a multidão de devotos se acotovelando nas procissões, a mulher com uma pedra na cabeça, o menino sem olhos, o penitente entoando um bendito, os ex-votos na Matriz, a catinga de urina, suor e excremento no ar, vamos cantando, irmãos, cheio de amor, cheio de amor, eu sem entender direito aquilo, a cabeça rodando, o planeta girando, as chagas trazes do Salvador, o povo se espremendo em cânticos, Senhor fazei-me um instrumento de vossa paz, “Mamãe, tô com sede, quero um Blimp-Limão”, “Tu vai levar é uma mãozada nos beiços, segura no andor, peste, e reza”, onde houver ódio que eu leve o amor, “Ai, o de baixo é meu, dona”...


Tudo isso me veio à mente agora, ao deparar com toda essa gente a pé, na Bezerra de Menezes, a caminho da Terra de Francisco no Ceará. Vão contritos, expiando culpas e pecados nas muitas bolhas dos doloridos pés. O calor inclemente não lhes diminui a coragem, feita de crença inabalável. Quem sou eu para julgar o sacrifício que se lhes impõem? Seus passos são contas de um rosário debulhado em penoso silêncio. Na volta de minha viagem, tarde da noite, lembro que vim debaixo de carão e beliscão por ser pivete malcriado e herege, candidato a interno no Santo Antônio do Buraco de Maracanaú para criar marra. Com o doce-amargo dessas recordações, eu, agnóstico, desejo boa sorte a esses peregrinos, em sua busca sofrida de remissão e felicidade.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2013/10/07/noticiasromeuduarte,3141840/outubros-de-francisco.shtml

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