Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: A vida e outras trilhas

Seg, 21 de Outubro de 2013 09:20



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

E se um dia saísse da sala de aula e desse fim aos estudos, virasse andarilho? Outra travessia, por terra, mar e ar?

 

À Solange, com um beijo


E se em vez de menino, tivesse vindo menina, o sexo bífido no lugar da pinta? O berço não nas Minas Gerais, mas em outro lugar, brasileiro ou estrangeiro, o sotaque forte, a língua diferente, a fala arrevesada? Arriscado ainda ser trocado na maternidade, pai e mãe outros, os verdadeiros nunca mais vistos, desaparecidos na voragem do tempo, outra família, outros sobrenomes. O mesmo eu? No lugar da infância modesta, a meninice abastada, de um tudo na geladeira e no armário, a gordura no canto da magreza. O destino roda o globo e espeta o dedo: Fortaleza? Que nada: Guaporé, Córdoba, Seattle, Xangai, Dublin, Timbuktu, cidade aqui é mato. Meu corpo, minha existência se dando em outras terras, outras rotas, nas encruzilhadas da vida que poderia ter sido.


E se em vez da Base Aérea, fosse Aldeota, Bairro de Fátima, Parangaba ou Pirambu? Outras amizades, traquinagens dessemelhantes, trajetória diversa. Talvez jamais tivesse conhecido o Frei Ambrósio e o Luís do Militão. Nunca os rasantes dos aviões tão perto, o trem vermelho-e-amarelo rodando e apitando por dentro do bananal, o gol de cabeça nos minutos finais após o cruzamento do Marcelo Villar. Imagino-me aluno do Colégio Militar, do 7 de Setembro e do São José e não do Colégio Cearense, a farda alvi-anil trocada por outra qualquer. Teriam sido iguais a aprendizagem, a camaradagem, as reprimendas, os fracassos e os êxitos? E se um dia saísse da sala de aula e desse fim aos estudos, virasse andarilho? Outra travessia, por terra, mar e ar?


Lembro do rosto de espanto de meu pai, com uma enciclopédia de termos técnicos nas mãos para me dar de presente, ao me ouvir dizer de minha desistência da Engenharia. Tivesse eu permanecido no mesmo lugar, a contragosto, o que teria sucedido? Um profissional frustrado, alguém eternamente de mal com o mundo e seus moradores ou teria de alguma forma me encontrado? E se eu tivesse rasgado a prova do vestibular de Arquitetura e resolvido cursar Relações Internacionais, como queria minha mãe, no caminho de volta para casa? Se aprovado, onde estaria a uma hora dessas, numa recepção elegante em Paris, sorvendo o gelado champagne do sucesso, ou sob os escombros de um hotel destruído por um carro-bomba em Bangladesh?


Ah, amada Solange, não me vejo sem você. Já pensou, entretanto, como seria se em vez daquele já antigo beijo apaixonado no Cine Gazeta (passava Fantasia, de Walt Disney, com música de Leopold Stokowski) eu tivesse metido o pé na carreira e aberto mão dos meus próprios sentimentos? Jamais teríamos construído o nosso terno ninho. De modo semelhante, se minha opção fosse por um relacionamento meramente pragmático com os meandros arquitetônicos e urbanísticos não teria firmado esse pacto de sangue com a minha profissão, com o bônus e o ônus decorrentes. Talvez sejamos o resultado de nossas escolhas, dos caminhos que ousamos tomar. Mas, qual o peso do desígnio nisso tudo, da sina, do fado, na dor e na delícia de cada um?


“De tanto divagar, compadre, o gelo do teu uísque derreteu...”, disse-me o amigo. “Já se faz tarde, vou pegar o beco, é hora de bicho pegar menino, cada um com o seu fadário”, despediu-se e, valendo-se da bela palavra do samba de Nelson Gonçalves, sumiu na noite. As prateleiras do bar quase vazio, além das garrafas, estavam pejadas de inúmeras propostas, todas possíveis. A grande quantidade de “se” e de verbos conjugados no pretérito imperfeito do subjuntivo atulhava o ambiente, sugerindo mil direções e trilhas alternativas. Estava mergulhado nesse universo enviesado quando escuto o garçom, absorto em sua faina de servir, cantarolar baixinho: “Não sei se vou, não sei se fico, se fico aqui, se fico lá, se estou lá, tenho que vir, se estou aqui, tenho que voltar...”.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2013/10/21/noticiasromeuduarte,3149564/a-vida-e-outras-trilhas.shtml

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