Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: E-mail ao Airton Monte

Ter, 29 de Outubro de 2013 09:35



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

O ofício da escrita, poeta, abriu-me perspectivas para outras possibilidades de ver e viver o mundo. A manhã amarrotada, o ser comum ou esquisito ao lado (...), de tudo se faz canção.

Diga lá, amigo, tudo bem? Ou melhor, do jeito que nos cumprimentávamos aqui no planeta Terra, o que é que há, canalha? Como estão as coisas aí por cima, ou por baixo, ou em algum lugar, ou em lugar nenhum? Por aqui, vai se vivendo. Teu Fortaleza, parece maldição, continua na Série C no ano que vem. Meu Ceará faz o possível para entrar no G4 da Série B, ameaçando ter superado a síndrome da cancela. Nosso Botafogo está bem na foto, apesar de ter levado dia desses uma traulitada do Flamengo. A seleção é só esperança, nessa Copa do Mundo de tanta safadeza e confusão. Trabalhando mais do que posso e ganhando menos do que preciso, defendo no batente a cervejinha das crianças. E ainda dizem por aí que eu nunca dei um dia de serviço a ninguém...

 

O motivo deste e-mail é festivo: completo hoje um ano como cronista d’O POVO, ocupando às segundas-feiras o lugar que foi teu. Lugar, aliás, rotativamente ocupado, pois além de mim há outros nos demais dias, tudo gente de fina estampa. A cada crônica que cometo, como dirias, tua esbelta figura me toma o pensamento: “como é que o cara conseguia escrever textos cheios de graça e verve, como os muitos que nos deixou, todos os dias?”. Mesmo hebdomadário, o serviço para mim não é fácil. Escolher os temas e as histórias (verdadeiras ou não), delinear os personagens (a maioria sem nome), acertar o tom (como o tanto de coca na dose de rum), pingar o ponto final são tarefas árduas que as mãos cumprem sobre o teclado, que não é o da tua sambada Underwood...


O ofício da escrita, poeta, abriu-me perspectivas para outras possibilidades de ver e viver o mundo. A manhã amarrotada, o ser comum ou esquisito ao lado, o cachorro vadio, o bar lotado, de tudo se faz canção. Rever memórias, decifrar o presente, adivinhar o futuro, tecer o fio tênue ou grosso da narrativa, tentar prender a atenção de quem lê, dizer algo que mude alguma coisa do lado de lá, tem sido este o meu dever de casa às quintas-feiras à tarde, na solidão do meu escritório. Cumprir religiosamente o prazo para o envio da peça e aguardar o barulho do jornal batendo no chão da varanda de minha casa no começo da semana são prazeres que não têm preço. Melhor só os comentários dos leitores: “não entendo nada, palavrório difícil, mas às segundas sou seu fiel”.


Como disse George-Louis Leclerc, o Conde de Buffon, o estilo é o próprio homem. Construir a embocadura, o timbre, a fala é algo que leva tempo, é trabalho que se faz em silêncio e a partir de dentro. Como soar autêntico, genuíno, usando-se vocábulos, dados volúveis, para expressar o eu? O que faço é literatura ou não devo me preocupar com isso? Aliás, poderá alimentar qualquer grande expectativa aquele que pratica um gênero literário utilitário e pré-determinado, que tem seu abrigo, como antes o peixe, nas páginas do jornal? A esta altura, já deverás estar aporrinhado, com um cotoco preparado para mim, o bigode ralo, os óculos de aro, a cerveja sem álcool, o cigarrinho furtivo, a vida infelizmente curta como a da crônica, saudade, poeta, saudade...


Verdade, amigo, Fortaleza ficou mais triste, chata e burra desde que partiste. Tanto pela falta da tua gaitada desdentada e míope quanto pelo grande pânico da vida aqui, cada vez mais amarga, perigosa e sem solução. Se o teu sobradinho azul na Praia de Iracema permanece no imaginário, o mulherio continua imbatível, que o diga aquela moça com a flor na boca. Termino com uma reclamação: não, Pessoa, escrever não é esquecer; se assim fosse, o que seriam estas mal-traçadas de letras invisíveis postas sobre um papel de vento? Como olvidar quem nos abriu, com um sorriso maroto, todo um universo de pensares e sentires? Tuas cinzas sobre as ondas, teu canto final. Subitamente benficano e gentilandino, no Clube do Bode, ergo um brinde de lágrimas à tua memória.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2013/10/28/noticiasromeuduarte,3153559/e-mail-ao-airton-monte.shtml

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