Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: O Natal dos comunistas

Sex, 03 de Janeiro de 2014 10:15



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

"Ao ler aquelas palavras, todo o seu passado lhe aguilhoara em fero desafio. (...) Ao descer do carro de aluguel no bar da Praia de Iracema, aceso, já cantava a Internacional"

 

No táxi varando a noite, ele ia calado, refletindo sobre o que lhe acontecera nos últimos dias. Recebera o convite como uma senha, uma convocação secreta, um chamado a que não poderia jamais faltar. Não fora encaminhado pelo correio; alguém teve a paciência de ir atrás do seu endereço, anotá-lo e despachar a mensagem, papel amassado entre a pilha de correspondências. “Pessoal e intransferível, é?”, resmungou a mulher, “por acaso é algum aniversário de quinze anos?”, ralhou, curiosíssima quanto ao conteúdo daquele misterioso bilhete. Ele, envolto em sete capas e mudo desde então, desconversava: “Que nada, reunião de amigos de muito tempo, de toda a vida”. Ela, desconfiada e de pouca história na sua biografia, fumando numa quenga.

 

O recado era muito claro e direto: “Camarada, o mundo passa por transformações, é certo, mas somente na superfície. No miolo, o que há é a velha exploração do homem pelo homem, agora em escala cibernética, e a extração absurda e dramática da mais valia. Reunamo-nos para uma importante análise dessa conjuntura cruel que nos avilta e arrasa. Digamos não ao capital e a tudo o que ele representa! Junte-se a nós, contamos com você!”. De rubra juventude, rosado nos últimos anos, não poderia ficar insensível ao apelo. Ao ler aquelas palavras, todo o seu passado lhe aguilhoara em fero desafio. Não, dessa vez não recearia, a coisa tocara-lhe os brios. Ao descer do carro de aluguel no bar da Praia de Iracema, aceso, já cantava a Internacional.

 

O povo da sua melhor lembrança estava lá. Os que estavam nas passeatas, os que redigiram os manifestos, os intelectuais e os obreiros, os que lutaram contra a polícia, os que foram para a clandestinidade, os que enfrentaram o exílio. Até os mortos e desaparecidos, de alguma forma, estavam lá. Até aquela menina linda e destemida de há quase cinco décadas, agora uma respeitável senhora, se fazia presente, os mesmos olhos inesquecíveis. Cumprimentou uma multidão, aboletou-se em um canto de mesa, pediu uma cuba-libre em honra das velhas amizades e ficou a fitar aquela mais que madura e ainda bela mulher, que lhe retribuía sorrindo os olhares. Ah, o tempo, esse sábio e ingrato senhor, a nos diminuir o prazo e aumentar a matreirice... 

 

O bolchevique encanto sofreu rude golpe quando o dono do boteco, de longas barbas brancas e trajado à Papai Noel, dir-se-ia um Karl Marx natalino, pediu para falar: “Companheiros de longa data, é um prazer recebê-los. Tê-los aqui, nesta véspera de Natal, não tem preço. Aliás, por falar nisso, ofereço-lhes a seguinte proposta: vocês terão neste estabelecimento um local reservado, decorado de forma temática, com música de época e bebida e comida a custos mais que camaradas. Esta cidade desmemoriada precisa conhecer e valorizar seus verdadeiros heróis. Quem sabe uma nova revolução não nascerá destas cabeças, agora grisalhas e mais experientes? Unidos, jamais seremos vencidos”. Se sua lábia era boa, a ira ébria do nosso protagonista era também.

 

“Vai te lascar, cabra fuleiragem, qual é a tua, quer fazer da gente e dessa birosca um zoológico de comunistas?”, berrou. “Eis os domesticados, ali os selvagens, naquele canto os que se reproduzem em cativeiro. Avante, vítimas da fome, destruamos quem nos oprime”, disse, carbonário, em mofa navalhante. Foi o bastante para que um fuá vermelho como sangue se armasse e evoluísse. “Meu Deus”, lamentava o proprietário da taberna, “isso é o que dá tentar juntar Jesus Cristo, Milton Friedman e Lênin. Cambada de trogloditas, terão coragem de fazer pelo menos uma autocrítica?”. Já longe dali, nosso guerreiro, corte na boca e amarrotado de guerra, os olhos nos olhos da antiga namorada, só sorrisos sob as luzes e os anjos da Cidade da Criança.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2013/12/30/noticiasromeuduarte,3183366/o-natal-dos-comunistas.shtml

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