Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: O herói de si mesmo

Seg, 20 de Janeiro de 2014 13:00



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

A Helder Maia

Depois de trinta e cinco anos de batente diário, repousava ali na sua frente, sobre a mesa de trabalho, a portaria que lhe concedia a aposentadoria do banco. O portador do documento, o auxiliar de serviços gerais, escarafunchava o nariz, absorto, ansiando pela rápida assinatura do seu agora ex-chefe no livro de protocolos para pegar o beco mais cedo. O jamegão do mais recente aposentado da Terra saiu firme, entretanto algo trêmulo pela emoção contida no ato.

Sete lustros de lida finalizados com uma garatuja feita com uma Bic cor azul. As mesmas, aliás, naquele já distante 1979, que lhe abriram as portas para este mundo. De repente, a sala prorrompeu em aplausos, seus muitos colegas vieram lhe abraçar, o bolo escondido apareceu, entre risos e guaranás. O que faria agora de sua vida, tão alinhada e dependente da rotina daquele estabelecimento? Entrara ali pouco mais que um garoto, após a aprovação em um rigoroso concurso. Ele, menino danado do interior, inteligente e bom de mandado, soube aproveitar e como a escassa oportunidade. Diligente e solidário, qualidades difíceis de encontrar em um só vivente, foi galgando um a um os patamares do ofício naquela autarquia federal até se instalar em tranqüilo cargo, que ele apelidou de “posto de observação do sistema financeiro nacional”. Desta privilegiada atalaia, pôde acompanhar e refletir sobre a trajetória das finanças brasileiras, xadrez jogado em mil dimensões, que ele agora compreendia tão bem, justamente na hora do apagar das luzes.

“Parabéns, amigo”, disse-lhe um colega, a boca cheia de farelo do bolo, “serás agora o gerente da tua existência, com tempo de sobra para programá-la de acordo com a tua vontade”. Incendiário, o glutão sugeriu: “Sacode fora a gravata, toca fogo no paletó. Aproveita este teu momento com prazer e sabedoria. Inaugura a tua perene folga com uma generosa dose de um bom escocês doze anos”. Desarmado, o jeito era comemorar com goladas do inocente refrigerante. Súbita paranóia: “Estarão eles alegres com o meu feito ou por se verem livres de minha pessoa?”. A dúvida atroz rapidamente dissipou-se com o discurso escrito num rolo de papel higiênico e lido com graça e em tom de agradecimento pelo impagável diretor, seu antigo e fiel estagiário.

O que faria agora de sua vida, tão alinhada e dependente da rotina daquele estabelecimento? Entrara ali pouco mais que um garoto, após a aprovação em um rigoroso concurso.

Na rua, logo depois dos numerosos e demorados abraços de adeus, agora envolto pelo ar condicionado do táxi novo em folha, nosso caro ex-funcionário, agora já entronizado no confortável universo dos reformados, olhava o prédio em que passara labutando essas mais de três décadas e repetia o Shakespeare que aprendera no colégio: “Toda despedida é dor...tão doce, todavia, que eu te diria boa noite até que amanhecesse o dia”. A geografia da cidade outra lhe seria então, oferecendo-lhe leituras diferenciadas de ruas e espaços que antes só faziam sentido por lhe conduzirem ao local da faina cotidiana. “Há toda uma Fortaleza por descobrir; esta será minha primeira aventura, ave livre da gaiola dos horários”, ruminava, neo-desbravador urbano.

Entretanto, já havia escolhido sua Pasárgada, seu país de delícias: o lar. “Lá serei amigo de mim mesmo, terei a vida que eu quiser, do jeito que escolherei”, certificava-se, indicando ao taxista o caminho do agradável prédio de apartamentos no Bairro de Fátima. Em lá chegando, contou a boa nova à mulher, a carta de alforria dançando entre as mãos nervosas. Ela, desconfiada e matreira como toda filha de Eva, decretou: “O quê?! Ficar em casa sem fazer nada?! De jeito nenhum. Você é novo ainda, vá tratando de arrumar alguma coisa para cuidar, quem fica parado é poste, avie!”. Foi para o quarto despir-se. “Como pode ser tão insensível?”. Surpresa: clandestino, no bolso do terno, o bilhetinho do diretor gozado: “Debaixo da porta do aposentado cresce capim”.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/01/20/noticiasromeuduarte,3193294/o-heroi-de-si-mesmo.shtml

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