Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: A Virgem dos Lábios de Fel

Ter, 04 de Fevereiro de 2014 09:10



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Desde 1965 que estou plantada na foz do Riacho Maceió, cada dia mais sujo e fedorento. Além das torres residenciais luxuosas do Mucuripe, estão comigo Martim, Moacir e Japi.

 

Este lugar é meu, estou em todos os seus cantos. Meu pai, quando me criou no Alagadiço Novo, já intuía isso. Encontro-me nos bairros pobres, remediados e ricos, nas placas dos estabelecimentos comerciais, nos letreiros que anunciam os destinos dos ônibus, no genótipo e no fenótipo das mulheres daqui, em suas caras largas, em seus cabelos, como os meus, negros como a asa da graúna, no fogo que carregam na carne, em sua bravura, Maria Luíza Fontenele, Rachel de Queiroz, Tita Tavares ou aquela ali se vendendo, escorada na parede do forte. Continuo indo todos os dias do Ipu à praia com uma paradinha na volta para tirar o sal naquela bela lagoa acolá. Guerreiro branco? Ele que se cuide, pois há outros morenos, amarelos, louros, pretos, uma ruma, meu amor.


Quem primeiro me esculpiu foi Corbiniano Lins, pernambucano de Olinda, doido pelas formas sinuosas femininas. Desde 1965 que estou plantada na foz do Riacho Maceió, cada dia mais sujo e fedorento. Além das torres residenciais luxuosas do Mucuripe, estão comigo Martim, Moacir e Japi, os três sentados sobre uma jangada. Coxas grossas, bunda arrebitada, peitos de cuia, tanga de plumas, cachola pequena, cabeleira farta, há quem passe, assovie e dê piada: “Gostosa!”. Ah, se soubessem como têm sofrido nossos corpos de concreto esses anos todos. Martim e sua espada arrancada. Moacir e a velha urupema quebrada. O pobre Japi, foi, não foi, perde a cabeça e não é por nenhuma cadela, não. Botam a culpa na maresia. Pior que o sal é a mão do homem mau.


Depois foi a vez de Zenon Barreto me imaginar Guardiã, em 1996, no pleno declínio da praia minha xará. Assentada sobre um pedestal, ajoelhada em posição de ataque, o arco curvado para mandar longe a flecha certeira, pastoro o mar em defesa desta cidade que tanto me maltrata. O mestre sobralense me idealizou originalmente em ferro; hoje, depois de tantas agressões, sou um frágil amálgama de metal e fibra de vidro. Algumas pessoas parecem gostar de mim; nos finais de tarde, vêm aos magotes, põem-me na roda, tiram fotografias minhas com seus celulares. Entretanto, outros, revoltados de butique, adoram tirar sarro da minha figura. A última foi um dia desses: um bando de abestados protestou contra a Copa pichando o meu traseiro. Se o Seu Zenon visse isso...


Minha imagem mais recente é a que está se banhando sobre uma rocha, com uma seta na mão, faceira e colossal, no meio do espelho d’água da lagoa de Messejana. Resultado de um concurso ganho pelo escultor Alexandre Rodrigues em 2004, minha estátua ganhou o rosto de uma garota cearense que participou de um desses BBBs da Globo. A cunhã era até bonitinha e bem apanhada, mas não chegava aos meus pés. O problema é que ninguém se lembra mais da minha face, tão presente, no passado, nas carteiras de cigarro e nos rótulos das garrafas de cachaça. Aqui também apanho e muito: vocês precisam ver a quantidade de lixo boiando à minha volta. Os vândalos já tisnaram minha pele de resina. Égua, difícil a vida de monumento em Fortaleza.


Há mais duas Iracemas por aí, mas vou ficando por aqui. Expondo o meu drama, termino falando pelos meus iguais. Vivem pintando óculos redondos no Clóvis Beviláqua da Praça da Faculdade de Direito. Pensam que o pobre do Patativa está pedindo esmola no Centro Dragão do Mar e enchem a mão dele de moedas. A coitada da Bárbara de Alencar, senhora altiva e avó do meu senhor, apareceu certa manhã com uma terça de Colonial na boca, colocada por algum vagabundo contrário à Confederação do Equador. Sinto perder o viço com o passar do tempo. As heroínas atuais são magras, viajadas e tiram a roupa na Playboy. Quem ainda quer saber de talhe de palmeira, favo da jati, baunilha do bosque? Ah, Ceará, te dei um rumo e é isto que me dás em troca?

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/02/03/noticiasromeuduarte,3200443/a-virgem-dos-labios-de-fel.shtml

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