Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Balaclava de sangue

Seg, 17 de Fevereiro de 2014 10:57



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Relógio no chão da praça, batendo, avisando a hora que a raiva traçou no tempo.

Ah, Candelária, tu, de tantas tragédias, reparaste como as pombas da tua praça alçaram voo na hora do estouro? Um foguete na cabeça, uma câmera nas mãos, o miserável não teve a mínima chance. Os que escondem a face atrás de uma máscara de pano se escafederam tão ligeiro quanto se ajuntaram para manifestar seu ódio. Algo deu errado, não era esse o objetivo, foram longe demais? O certo é que agora há alguém gravemente ferido, jogado no chão, o sangue espesso no mosaico imundo. Perna, para que te quero, sujou, nessa hora o rabo é um relho. Os remanescentes poucos, os rostos crispados, apiedam-se do pobre diabo prostrado. “Parece o menino do Calabouço”, disse um senhor de idade, “Naquele tempo em que os revoltados mostravam a cara”.


A sirene da ambulância aguça a memória. Quando a coisa começou na fria Pauliceia, no ano passado, mesmo intolerante e violento, o movimento angariava simpatias. Como não protestar contra o aumento da passagem de ônibus, os serviços públicos ineficientes, a cidade inacessível, a truculência da polícia? O poeta dos resmungos defendia a ira do povo desorganizado nas ruas enquanto o cantor do abraçaço amarrava a camisa no semblante, os olhos raivosos à mostra, solidário com tudo aquilo. Gentis amigos de sempiternas doces maneiras defendiam no grito, no peito e na raça as ações dos ativistas até o deletar no Facebook. Sem patrulha, mas como estarão se sentindo agora? Rápidos no polo oposto, chamando de terrorista quem antes era herói?


Para muita gente, vivíamos (vivemos) no negror da mais dura e cruel das ditaduras. A parada brasileira está tão ruim assim ou nos tornamos mais exigentes? Segue urgente para o hospital o cinegrafista ensanguentado, seu corpo estendido numa maca encardida, a vida por um fio. Vozes alteradas, culpas atiradas de parte a parte, o conflito não terminará aqui. Doravante, como serão vistas as manifestações? Atos legítimos de cidadãos contrariados em seus direitos ou safadezas comandadas por arruaceiros consumistas a soldo de interesses escusos? A justa reivindicação, então, poderá ser enquadrada como mera ação criminosa? Há quem deseje loucamente uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade? Muitas perguntas, nenhuma resposta, arre.


Quem cala sobre o teu corpo consente na tua morte. As pombas, assustadas, ainda não voltaram, não querem mais saber do chão. Quantas mãos dispararam o rojão assassino? Somente as dos garotos tatibitates, os tais do não sei, não vi, só estava passando, só fiz entregar, não era bem isso, pois é, pena, sinto muito? Talhada a ferro e fogo nas profundezas do corte. Chega a nota triste do passamento do ferido, o caixão coberto com a bandeira do Flamengo, mesmo time da viúva em lágrimas, comoção nacional. Sutil ironia: os que vociferavam por democracia, clareza e transparência, embora mascarados, atingiram mortalmente justo quem transmitia a notícia para todo o país. Quem cala morre contigo mais morto que estás agora. O horror, o horror.


Esquecida, junto ao poste no passeio, uma balaclava negra. Imposição do fero verão carioca neste Rio de Janeiro que continua lindo ou evidência de um fundo arrependimento? Na lembrança, a mancha de sangue do falecido no piso que lhe serviu de sudário. Que dia é hoje? Relógio no chão da praça, batendo, avisando a hora que a raiva traçou no tempo. Uma cruz negra, imensa, depositada sobre a areia da praia em honra ao que se foi, que poderia dizer, como o bardo desaparecido: “Copacabana, esta semana o mar sou eu”. O sol dardeja seus últimos raios nesta cidade de São Sebastião, mais flechado que nunca. O crepúsculo insinua: no incêndio repetido, o brilho do teu cabelo. Chega de metáfora: Sininho, acabou-se o pó de pirlimpimpim, the game is over.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/02/17/noticiasromeuduarte,3207436/balaclava-de-sangue.shtml

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