Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: O DNA da ginga

Seg, 10 de Março de 2014 09:25



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

A Dilson Pinheiro


Desigual por natureza, desde sempre Fortaleza assistiu de camarote a essa sua (imorredoura?) característica plasmar seu Carnaval. Justo em meados do século XIX, quando a pagodeira por aqui começou com o lusitano nome de Entrudo, João Nogueira já reclamava do mau gosto e da bagunça que os foliões de então faziam com um mela-mela à base de bexigas d’água, cera de sapato e farinha de trigo. De um lado, o canelau travestido em papangus, com seus trajes em xadrez, assustando a garotada na rua. De outro, os bem de vida em suas sociedades carnavalescas, nos bailes fechados dos clubes Iracema e União Cearense. No corso, a elite se espremia no miolo da via e a arraia miúda arrasava nas coxias. Brigas, estas só quando os remediados topavam os ricos.

Nas primeiras décadas do século XX, para além da Major Facundo, os cortejos carnavalescos ganharam os bulevares, já acompanhando a expansão da cidade. Ficaram famosos os realizados no da Conceição (Dom Manuel), marcados pelos desfiles de belas mulheres de vida airada em caminhões. Antes, a patuléia se esbaldava nos sambas de areia e umbigadas da periferia, enquanto a comunidade negra entoava os dolentes cantos do maracatu, ainda hoje um símbolo de resistência cultural. As marchinhas ganhavam terreno a cada ano, com letras marotas ou de duplo sentido sobre o foxtrot. Piriguetes da época, as coca-colas ganharam seu cordão nos anos de 1940 por pirraça de uns sargentos da Base, cismados com o grude das moças nos milicos ianques.


Diz um amigo meu, para rebaixar a idade que lhe pesa nos couros: “sou do tempo da Xuxa para cá”. Não sou tão moleque assim: lembro-me perfeitamente dos dias de Momo brincados no asfalto da Duque de Caxias por escolas de samba, blocos, cordões e maracatus. Ispaia Brasa, Império Ideal, Leopoldina Show, Prova de Fogo, Ás de Ouro, Ás de Paus, Leão Coroado, dentre outros, na já distante década de 1960, faziam a minha alegria de menino. Narcélio e Paulo Limaverde narrando a marcha dos brincantes, aquele circunspecto e este dando gaitadas mil atrás do Bicho Chulapão. Irapuan Lima, Toinho e o rei Javeh na corte do samba instalada no Flórida Bar. Animando as festas das agremiações elegantes, Ivanildo e seu Conjunto. Memória de um tempo bom.


Mas chegam os anos de 1970 e 1980 e com eles a conversa de que Fortaleza não tinha Carnaval, que era a capital do descanso na farra de fevereiro, mesmo com os Enviados de Alá botando para ferver com seus caftas listrados. Foi o tempo em se tornou costume arribar para Paracuru, Aracati, Beberibe, Camocim e outras paragens para curtir o Carnaval de praia. Sem a tal da Lei Seca, casas alugadas com mais de sessenta pessoas, birita rolando de manhã, de tarde e de noite, trio elétrico, paredão de som, banho de mar à fantasia, o azul de Jezebel no céu de Calcutá. O carnavalesco abandono da Loura findou lá pelo meio da década de 1990 graças à teimosia de uns poucos heróis, pais do pré-carnaval, que sacaram que o lance era aqui, pois quem é de bem, fica.


Todas essas lembranças me assaltam enquanto assisto à sensacional apresentação d´As Gata Pira na Praça General Tibúrcio, na Terça-Feira Gorda, nosso Mardi Gras. Vindo da animação do Sanatório Geral lá do Benfica e já de olho no Largo da Mocinha (já sabendo que o Luxo da Aldeia Concentra Mas não Sai), uma certeza me invade: por mais que uns não queiram ou apoiem, temos Carnaval, sim, dos bons e o que é melhor, fruto de um desejo popular, de gente feliz, pacífica e ordeira que dá valor às belezas da cidade e, por isso, merece respeito. Quem pensou em vir para cá para dormir que vá armar sua rede noutro canto deste imenso País. Quem só acordou agora, que se pegue da coisa e não vacile mais. Os leões, doidões, dançam em baby-dolls de nylon.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/03/10/noticiasromeuduarte,3217381/o-dna-da-ginga.shtml
Reportar bug