Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: A ferrugem do tempo

Seg, 17 de Março de 2014 11:10



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Aguardando o meu momento, faço selfies de mim para comigo como passatempo. Antes, a espera no banco era suportada com muita leitura.

 

As coisas estão se acabando, tornando-se obsoletas dia a dia numa velocidade impressionante. Será esse envelhecimento sutilmente programado? Quem determina a falência, a morte e a substituição dos objetos e dos fazeres por outros novos? Rumino essas considerações enquanto aguardo a minha vez no caixa-rápido. A felizarda primeira da linha, há quase quinze minutos usando a máquina, já executou um sem número de operações. Num passado recente, teria que trazer de casa o lanche e uma cadeira se não quisesse mofar nas longas e modorrentas filas. Eu mesmo, quanto tempo perdi nestas fileiras de gente para sacar merreca na boca do caixa. Mas, e quanto àquelas pessoas que perderam seus bancários empregos em favor da tal comodidade alheia?


Despertei para o lance ao ouvir o jingle do Ednardo anunciando a chegada do Center Um, nos meados da já distante década de 1970: “Depois que acabaram com a Coluna da Hora/Depois que derrubaram o Abrigo Central/O centro da cidade/Mudou pra outro local/Lá tem ar pra respirar/Tem coisas lindas pra olhar/Tem muita coisa pra comprar/Pois o centro agora é o Center Um”. A música, boa de cantar, anunciava a decadência da zona central e a emergência da Aldeota como reluzente área de comércio sofisticado. Crônica do fim anunciado ou não, o certo é que essa premonição acabou se realizando. E não parou aí: a cidade inchou, se polinucleou e hoje bate perna na passarela do shopping da Parangaba. Quantas surpresas ainda nos reserva o destino?


No mundo digital, a doidice é ainda maior. Computadores imensos cederam lugar a equipamentos cada vez menores. Alguém aí ainda usa disquete ou CD? O pendrive está com a corda no pescoço. Há uma nuvem sobre a cabeça de cada um de nós recheada com nossas informações. O que a sucederá? Tão rápido quanto surgiram, desaparecem as lan-houses. Descansem em paz, ICQ, MSN, Orkut e Twitter. Te cuida, Facebook. WhatsApp, DropBox? Essa sofreguidão em afagar celulares, iPhones, iPods, iPads, tablets, o que causará? Decretaremos o final dos contatos presenciais, desistiremos das cidades, diremos não às ruas e às praças, abriremos mão da vida comunitária? Sim, Dr. Freud, toda pessoa continua sendo um abismo, agora online total, só.


De tanto digitar, minha caligrafia, que, de tão ruim, era quase incompreensível, hoje é um conjunto de hieróglifos. O desenho à mão, manifestação tão prezada pelos arquitetos de antanho, é uma arte a bem dizer extinta, superada pelas mil possibilidades algorítmicas de representação e expressão. No comércio, sucumbem as locadoras de DVDs em favor das redes de aluguel de filmes. As tão faladas gerações Y e Z, serão elas as grandes culpadas da transformação? O que será das bibliotecas e dos livros que tão zelosamente guardam, dos cinemas, dos teatros? Quantos anos de uso terão ainda pela frente? Serão reprogramados ou sumirão na voragem da vida? Muito obrigado, orelhão, pelos bons serviços prestados, vá tranquilo e que Deus o acompanhe.


Aguardando o meu momento, faço selfies de mim para comigo como passatempo. Antes, a espera no banco era suportada com muita leitura (ai, jornal de papel, quando soará o teu sino?). Atualmente, brincamos conosco registrando caretas, sem ter mais o que fazer, num espetáculo público ridículo. Reparo no meu rosto no espelho instantâneo. A cabeleira e o cavanhaque já grisalhos, as fundas olheiras, os olhos cansados. Cinquenta e cinco primaveras recém completadas. Humana encruzilhada de tempos e lembranças ou um mero fóssil vivo, um pobre celacanto? Opa, chegou a minha hora. Com licença, cartão no buraco, que dinheiro na mão é vendaval. Saindo daqui, vou direto à Praça Portugal. Será que ela vai estar no mesmo lugar quando eu lá chegar?

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/03/17/noticiasromeuduarte,3221014/a-ferrugem-do-tempo.shtml

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