Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Um dia na vida

Qua, 06 de Agosto de 2014 08:00



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

A Dejoces Batista

 

O sol, insinuando-se pela veneziana, decretou o início da jornada. Morava sozinho no bairro das dunas, na zona leste da cidade, em uma mansão que ele ironicamente chamava de “Palácio do Tibet”. “Quem me vê assim, não sabe nada de mim”, sorria de si para consigo. Banho e café rapidamente tomados, agenda de compromissos conferida, seguiu para o trabalho em um sacolejante ônibus.

A cidade passando veloz lá fora e ele com o olho pregado no jornal dobrado ao meio. Na foto de capa, já antiga, dois atores da cena política local, hoje ferrenhos adversários, mordiam amistosamente a doce rapadura do poder. Num canto de página, a réplica do templo de Jerusalém, que será inaugurado pela presidenta e pelo sumo pontífice. Noutro, a fumaceira das cinzas de Gaza.

 

Era professor. De segunda a sexta, saía do Vicente Pinzón rumo à Aerolândia para trabalhar numa escola do Estado. Hoje a viagem tinha sido até boa, nenhuma discussão entre passageiro, trocador e motorista, nenhum assalto. O colégio com o portão aberto, a viatura da polícia estacionada sobre a calçada, um cachorro deitado no chão. Tudo normal. Os alunos, mais interessados na merenda do que no saber, faziam a algazarra de sempre no pátio. O grandão pacífico, o sonso, o baixinho invocado, a tetéia, o delicado, a enredeira, a coxa, o perigoso, não conseguia decorar seus nomes, apenas suas maneiras. Na sala, preenchia a lousa com a matemática, sua especialidade. A turma só esperando a buzina para matar a fome. Na verdade, dava aula para si mesmo.

 

O almoço foi comido às pressas, em pé, no balcão da bodega. Arroz, feijão, um pedaço de frango insosso, um macarrãozinho, garapa de maracujá no copo embaçado. De volta ao batente, sob o jambeiro no jardim, pensava nos filhos, cada vez mais crescidos e amados, e na merreca do ordenado mensal, todo comprometido com contas, empréstimos, penduras e afins. Em classe, reclamou do converseiro e da falta de interesse do tranca-rua, sentado lá no fundão, do lado do guaxinim. “Fica na tua, coroa, que é melhor pra tu, cara”, rosnou o pivete, entre dentes. Fez que não ouviu, não tinha medo de ameaça, essa era apenas mais uma em meio a tantas outras que ali já havia recebido. No final do expediente, apartou um sururu, provocado por uma dívida de crack.

 

Na saída, rouco de tanta lição dada a plateias desatentas e famintas, despediu-se da diretora com um ar cansado. “Sei como o senhor se sente”, disse ela, “Às vezes dá uma vontade de ir embora e não voltar para cá jamais”. “O diabo é a missão, o compromisso, mesmo sendo o dinheiro pouco”, sorriu ele, “Basta uma pequena conquista, uma alegriazinha que seja, para a esperança renascer”. No bar, com os amigos, boquinha da noite, discutiu a atual conjuntura, do futebol fracassado às pernas da estrela da novela das oito, transitando ainda pela diplomacia internacional. No banheiro, o espelho lhe recomendava cuidar mais de sua pessoa, passar um ferro na alma, tão amarrotada e só. Sem mais, deu adeus à tropa boa e foi embora para o Tibet.

 

“Mais um dia nessa vida besta, Meu Deus”, pensava ele, enquanto aguardava a condução na parada. “Tanta coisa, da ínfima à grandiosa, da banal à inesquecível, acontece para todo mundo nesse espaço de vinte quatro horas”, refletia, a ideia longe, embalada por canções tristonhas que falam de cotidiano e rotina. Sua morada, lamentava, incrustada naquele lugar ermo e na escala do automóvel, só seria alcançada, após a descida do coletivo, depois de alguns bons quarteirões vencidos a pé. Uma vez lá, era dormir, esperar a manhã de amanhã nascer e repetir o processo. Enquanto isso, o remédio era esperar por mais um milagre de São Cristóvão, padroeiro dos solteiros e dos transportes. Súbito, um rapaz de rosto conhecido, sorriso cínico, objeto metálico nas mãos.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/08/04/noticiasromeuduarte,3292156/um-dia-na-vida.shtml

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