Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Vida de empréstimo

Seg, 23 de Dezembro de 2013 08:35



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

"São tantas as rotas possíveis nesta cidade ensolarada e ele nem aí, quiçá aguardando telepaticamente um palpite melhor meu"

 

Tem dias em que acordo com vontade de ser igual a esse sujeito que passa lá fora, ao alcance da vista da janela deste escritório atulhado de dever de aluno para corrigir. Escapulir, ter outros CPF e RG, virar outra pessoa, ter outro nome, inventar outra vida. Meu herói anônimo e alter-ego nem imagina a inveja que tenho do seu existir. De calção, chinela havaiana, camisa de meia sobre o ombro, cabelo ao vento, trinta e poucos anos, queimado de sol, aparenta já ter conversado um bocado com a Dona Branca, mesmo a esta hora da manhã. A meu ver, tudo lhe parece uma possibilidade e é exatamente a imprevisibilidade desse jogo de dados existencial que nele imagino o que me agrada. Encostado na parede nua, pitando um cigarro imaginário, em que desejo o seu pensar? 

 

Eu aqui aferrado ao reino da lida dura e da responsabilidade, mesmo em meio a este finório dezembro, incorrigível sábado do ano, e ele acolá, preparando o passo, já transformado por mim em modelo de ser. Qual o seu plano para esta quinta-feira? Batente, nem vem que não tem, o corpo do cara não foi feito para pegar no pesado. Quem sabe, enfrentar umas ondas e curtir um bronze na Praia do Ideal, a mais carioca de Fortaleza. Malandro, não dá pista do que pretende fazer. Ir de pés, pela sombra e por dentro, cantando o amor febril até Parangaba é uma idéia. Aí já sou eu traçando-lhe os caminhos, guia turístico dos nômades e sem destino. Messejana a esta época do ano fervilha, a feira pegando fogo de tanta gente. Ele sorri, talvez zombando da minha sugestão.

 

São tantas as rotas possíveis nesta cidade ensolarada e ele nem aí, quiçá aguardando telepaticamente um palpite melhor meu. Acocorado sob o jasmineiro em flor, parece examinar uma a uma as trilhas que conformam a agenda do seu dia para escolher a que mais lhe apetece. Não tem pressa, aguarda o sol esfriar, missão impossível. A vadiagem tem seus encantos: a moça que passa retribui-lhe o sorriso guloso, que pilhéria certeira terá ele lhe dito? Súbito, levanta-se, a cara voltada para o norte, uma meta no rumo da venta? Qual nada, era só para esticar as pernas, o chão agora é seu assento. Trajado à Joaquim Távora, quererá ir ao Centro, à Aldeota, ao Dionísio Torres? Tanta geografia à sua disposição e ele, refinado fiscal da natureza, a cismar.

 

Uns com tanto e outros com tão pouco. Soterrado em papel, avalio o esforço alheio exigindo apuro dos olhos cansados enquanto a figura curte o vai-e-vem da calçada, agora na companhia de um agitado doceiro. Estarão trocando impressões sobre o clima, se o picolé de cajá é melhor que o de graviola, se hoje vai ter racha na quadra, se o bagulho chegou? Com uma gaitada safada, despede-se o vendedor de doce gelado, quebrando a esquina em busca de freguês. O cabra, agora reclinado no muro, joga pedrinhas num gato malhado que atravessou a rua só para arrumar confusão. A árdua tarefa de espiar e fantasiar a vida dos outros consome a minha atenção: professor ou cronista?. O gato apedrejado, vencido, já decidiu: diabo é quem fica aqui. O tempo ruge.

 

Extenuado de não fazer nada, ergue-se e finalmente toma tento e partida. Caminha lento e bamboleante, o andar vadio em linha sinuosa pelo passeio. Para onde se dirige? Vai a Porangabuçu, assistir ao treino do Glorioso? Tomar uma terça de cana no Bar do Adão, lá no São João do Tauape? Dar um rolé na Barra do Ceará? Dormir ao abrigo das árvores do Parque Pajeú? Em que lugar montará seu lar provisório? Seu lema, o pedaço do poema de Antônio Machado: “Caminhante, não há caminho, se faz caminho ao andar”. Ah, errante camarada, por um momento invejei teu viver, quis tua vida emprestada. Seria uma grande decepção por me faltar audácia para exercê-la. Não sou do ramo, melhor ficar aqui entre minhas anotações. Dá muito trabalho ser vagabundo.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2013/12/23/noticiasromeuduarte,3180868/vida-de-emprestimo.shtml

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