Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: Comentário a respeito de um desaparecido.

Seg, 06 de Janeiro de 2014 09:30



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

"Mas, poeta, que tal deixar de coisa e cuidar da vida, como disseste um dia? És ainda moço para tanta tristeza, senão chega a morte ou coisa parecida e te arrasta para longe"

 

Meu caro, eu não sei se agora o teu medo está por dentro ou por fora do teu coração. Sei apenas que quem te conhece, principalmente teus velhos amigos daqui, sofre com a tua desaparição. Quem sabe abriste a porta que dá para o sertão da tua solidão, construída desde que te descobriste apenas um rapaz latino-americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior. Estranho: percorrendo os teus escritos com os olhos de hoje, a palo seco, é como se tu tivesses planejado tudo em minúcias, quando não tinhas ainda o olhar lacrimoso que deve nesta hora estar fitando o Pampa. Maktub, estava escrito. Quem sabe, veio o tempo negro e, à força, fez contigo o mal que a força sempre faz: tornaste-te infeliz, mudo, nenhuma canção, nada mais.
 

Onde anda aquele que era alegre como um rio, um bicho, um bando de pardais? Estará pedindo aos que com ele se importam que saiam do seu caminho, que ele prefere andar sozinho, que deixem que ele decida a sua vida? É que, para esses que tanto lamentam teu estado, em cada luz de mercúrio eles vêem a luz do teu olhar, passam praças e viadutos e tu nem te lembras de voltar. Será que foges do que é teu seguindo as paralelas dos pneus na água das ruas, duas estradas nuas? As lembranças que aqui deixaste dizem de um sujeito cheio de vida, culto e inteligente, avesso à amargura, ao silêncio e ao mistério que cercam teu incerto paradeiro. Grana pouca? Esses casos de família e de dinheiro eu também nunca entendi bem.

 

Se alguém vier te perguntar por onde andaste, poderás argumentar que, enquanto todos sonhavam com o teu retorno, tu te desesperavas nos não-lugares dos estacionamentos desertos e dos hotéis não pagos. Ah, o egoísmo e a ganância do respeitável público, que te quer sempre no palco, tudo outra vez, às favas a dor que sentes. Pois é, Seu Zé, poderias ter dito o que disse teu colega Gonzaguinha: “ando tão mal que ando dando nó em pingo d’água, só mato a sede quando choro um pouco a minha mágoa, mas a platéia ainda aplaude e ainda pede bis, a platéia só deseja ser feliz”. Para muitos, só existes quando tua voz se levanta para o puro deleite. O verso do Cacaso poderia ser teu também: “quem me vê assim cantando, não sabe nada de mim”. Foto 3x4.

 

Mas, poeta, que tal deixar de coisa e cuidar da vida, como disseste um dia? És ainda moço para tanta tristeza, senão chega a morte ou coisa parecida e te arrasta para longe da tua rede branca e do teu cachorro ligeiro e te leva ao punhal que corta, ao fantasma escondido no porão. Desculpa o jeito meio tenebroso de falar, mas há tempo, muito tempo, que estás longe de casa. Não poderás reclamar do amante que a gente da tua rua arranjou ou da banana que a tua normalista linda te reservou pelas promessas não cumpridas. Claro, é apenas o charme brasileiro de alguém sozinho a cismar, mas eu quero é que este canto torto feito faca corte a tua carne, perdida nessas ilhas cheias de distância. Blues, tango argentino, o que vai melhor agora com o teu destino?

 

Mas, cara, a viagem é tua, o caminho é o que escolheste. Quem sou eu para te dizer alguma coisa ou apontar saídas? Por mim, voltavas, davas as caras de novo, de forma surpreendente como essa chuva que cai agora sobre nossas cabeças nesta quente hora do almoço do primeiro dia útil do ano. Não repara neste alinhavado, que só fica em pé com a força das tuas belas palavras. É somente uma colcha de retalhos cosida com a terna linha da saudade e do zelo para com aqueles que, como tu, valem a pena e fazem a vida valer ser vivida. Uma voz angustiada que talvez reflita as vozes de outros tantos, tontos de fazer dó, meu chapa, com o teu segredo, a tua mão fechada, a tua boca aberta, o teu peito deserto, a tua mão parada, lacrada, selada, molhada de medo.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/01/06/noticiasromeuduarte,3186289/comentario-a-respeito-de-um-desaparecido.shtml

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