Romeu Duarte escreve em sua coluna no jornal O POVO: O arquiteto e a aprendiz

Ter, 11 de Fevereiro de 2014 09:30



Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

 

A Nearco Araújo

Vai, menina, solta a linha de grafite pelo campo do papel manteiga em branco. Quem risca não rabisca, corre o risco e se arrisca nessa aventura de dar forma ao pensamento. Se a natureza fosse confortável, o homem não teria inventado a arquitetura, disse bem o bardo irlandês. Com esse lema na cabeça, não tenha medo: edifique e derrube paredes, erga pilares, estenda vigas, deite lajes, pavimente pisos, lance telhados, construa a moldura da vida humana. Este ofício que te ensino, novidade em teu viver, é tão velho quanto o desejo do homem de na Terra se estabelecer. Na Florença renascentista, um mestre do desenho, com a arte de construir, levantou uma cúpula oca sobre Maria em flor. O mesmo fazemos nós aqui agora, mesmo sendo humilde o nosso dever.

 

O projeto é um palimpsesto, um ir e vir frenético de decisões, em que a linguagem verbal é trocada por mil esboços e croquis

 

Borda, menina, com teu traço cru na alva folha nua, esta visão do real, tão vera e tão tua. Desenhar é uma forma de alguém possuir as coisas do mundo, mesmo essa pessoa sendo, como tu, pobre de marré deci. Tens, entretanto, essa magia inata que une olho, cérebro e mão para desvendar o visível e revelar o invisível que só tu vês. Aproveita e refina esse dom para conceber abrigos, honrada missão que escolheste. Esse teu mister, belo e necessário, além de te exigir gostar das gentes, vai demandar de ti razão, sensibilidade e atenção perenes, a paixão pelos edifícios, o perder-se pelas cidades, esses enigmas de milhões de faces. Não te esqueces: Deus está nos detalhes, no gesto mais singelo. A parte diz do todo como o todo faz a parte, em toda parte.

 

Apaga sem receio, menina, com a borracha do perdão, os teus muitos erros, os que ora cometes e os tantos que ainda cometerás. Exatamente isso: o projeto é um palimpsesto, um ir e vir frenético de decisões, em que a linguagem verbal é trocada por mil esboços e croquis. Quem não o compreende, ao vê-lo feito, pensa que a ideia sempre esteve lá, jazendo fácil na fina espessura do suporte, à mercê de quem o quiser resgatar. Entretanto, é o arquiteto, com seu gênio, quem o traz à tona, num parto complexo e gratificante. Eternamente grávido, o herdeiro de Palladio não teme o experimento: com a matéria bruta do concreto, do aço e do tijolo constrói o sublime espaço de morar, o oco, o útero, o lugar. De mais a mais, sem menos nem mais, faz e refaz todo dia o seu sonho chão. 

 

Desculpa, menina, meu método de ensino e trabalho ultrapassado. Sem o auxílio dos algoritmos, computadores e ferramentas espetaculares, opero ainda como nas velhas oficinas do passado, nas quais, ao final dos longos e penosos expedientes, os rostos, as mãos e os braços dos artífices se mostravam marcados a carvão. Claro, não precisas seguir a minha maneira; logo terás a tua, feita à tua feição e gosto. Não rias, contudo, do esquadro de ângulo, do escalímetro, do gabarito de círculos, da régua paralela, da prancheta: são meus velhos companheiros de labuta, muito me ajudaram e ajudam, com eles fiz tudo o que me foi possível fazer. Dois riscos sobre esta prancha são ainda uma parede de tijolos, acionam indústrias, criam empregos, geram felicidade.

 

Sabe, menina, este nosso encontro lembrou-me de um que tive há muito tempo com um querido professor numa aula de desenho. “Não consigo desenhar o paralelepípedo”, falei-lhe, aperreado frente à minha impotência em relação à tarefa imposta. “Não consegues representar a pedra, aluno, porque não a conheces”, disse-me ele, com forte sotaque amazônico. “Para desenhá-la, precisas penetrá-la, conhecê-la por dentro, entender a sua constituição e finalidade”. Passei a refletir sobre a sutil advertência, que mais tarde se transformou numa lição de sabedoria. Aprender, sempre. Conselho? Como disse Frank Lloyd Wright, “dedicação, trabalho duro e uma incessante devoção às coisas que tu queres que aconteça”. Sim, são lágrimas de alegria. Seja feliz.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/02/10/noticiasromeuduarte,3203962/o-arquiteto-e-a-aprendiz.shtml

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