CARTA ABERTA AOS AMIGOS BONS DO IAB (2)

No porvir, em remoto futuro, quando a humanidade organizar-se em moldes mais racionais, igualitários, e fraternos, cada indivíduo, então, ocupará a posição de executar a tarefa a que o destinam suas aptidões.
Nesse tempo a educação cessará de inculcar nos cérebros juvenis preconceitos fantásticos em lugar da verdade.
Aí se estabelecerá uma vida digna, atribuindo a este velho mundo a harmonia à toda vida em comum. Então, os homens estarão isentos de conflitos e a infelicidade parecerá incompreensível e a tortura, imposta nos limites da concorrência e da vontade pessoal ou de grupos, parecerá uma obscena perversão da qual se envergonhariam as pessoas decentes.
Então o prazer substituirá o sofrimento como tema capital da existência.
No dizer de alguns: um povo feliz não tem história. Portanto, quando se eliminar a miséria nada mais haverá o que se escrever sobre ela. Quem sabe seja melhor?
Em sua trajetória o IAB vivenciou o encontro de múltiplas temporalidades constituintes da história da arquitetura: os albores do modernismo, o prestígio da profissão, a construção de Brasília…
Em seu centenário, as comemorações explicam em parte o caráter nostálgico e melancólico que pode revestir nossas lembranças e propostas. A narrativa de tantas experiências, de múltiplos êxitos no plano da formalização de conteúdos políticos no campo do exercício da arquitetura e do urbanismo, vincadas na tradição iniciada e colhido nos resultados dos seus congressos, nas iniciativas e exemplos feitos, pensados e desenhados por gerações e gerações de profissionais, cujo prestígio e encanto evidenciaram no meio social sinais de admiração e respeito.
A arquitetura representa… significa um fato cultural inquestionável, porque qualifica o espaço edificado balizado pela história acumulada. Assim penso eu.
O IAB dilatou, alargou essa compreensão ampliando o horizonte da contribuição da arquitetura e dos arquitetos, no âmbito de proposições acumuladas na formulação de plataformas políticas ou em planos governamentais.
A história já anotou esses feitos.
Tantos caminhos enfatizam e dilatam os limites da profissão enquanto amálgama de uma consciência social e política, necessária a sua efetiva inserção na qualificação da vida nas cidades sem jamais perder o foco das dimensões poéticas do nosso ofício.
As lutas do IAB carregam a marca de uma utopia na construção da nação brasileira. Na ação integrada pelo idioma, em princípio, cujos desafios reivindicam o concurso da pluralidade, da democracia e da liberdade; exigências e pressupostos da vida republicana. Assim, mais que intenção, as ações do IAB devem ser vistas e servir a um projeto de país arrimado em tais premissas.
Esse é o sol do nosso futuro.
Por outro lado, não recusar o reconhecimento de uma brasilidade fragmentada em múltiplos aspectos, desde as generosas amplitudes dos espaços brasileiros às inquestionáveis desigualdades encontradas em cada rincão do nosso país: a marginalização decorrente de nossa pobreza e a violência diária que não mais surpreende nem arrepia.
Conformamo-nos com a morte diária nas ruas, com o enervante barulho das metrópoles, com a destruição da cidade e da paisagem. Que estas palavras calem fundo, evoquem nossas responsabilidades como cidadãos, induzam ao florescimento de ações contínuas encorpadas nas asas de um projeto cuja memória descritiva seja a desafiadora vontade de contribuir para a mudança.
O que nos obriga a fortalecer o engajamento político nos limites ditados pelo protesto, pela resistência e pela ruptura; quando necessário e na defesa intransigente da arquitetura como produção humana qualificada, alinhada, portanto, aos postulados e as dimensões culturais da vida civilizada.
Estes comentários, mais que ligeiros, servem-me de preâmbulo para dizer o que se segue. A formulação de um projeto para o IAB carece de uma ampla reflexão dos seus membros sobre a gravidade da crise social e humanitária na qual submerge o Brasil, agravada por um infamante processo de apartação e abandono visíveis em qualquer quadrante do país.
Aguçam essas trágicas condições, a devastação de espaços vitais, públicos e privados; a privatização de espaços públicos, consequência de um vandalismo cego nutrido por interesses econômicos possantes, cujos resultados são a ruína ecológica e uma alienação generalizada traduzidas pelo embrutecimento cultural, ético e estético da sociedade brasileira.
O ritmo acelerado dos tempos atuais, a ausência de políticas públicas consequentes não têm permitido um grau maior de reflexão sobre tantos acontecimentos. Dessa forma, acentua-se o abandono de áreas institucionais consolidadas e a ausência de interesse público voltado para a proteção e preservação de bens comuns e coletivos. Naturalmente, executam-se obras necessárias à vida urbana. Entretanto, algo nos falta; ou melhor dizendo, algo faz falta às cidades brasileiras.
Apesar de tudo, ainda se encontram em alguns lugares espaços urbanos diferenciados, que se completam mutuamente em sadia harmonia ao longo de sua evolução. Também é comum, assistirmos ao lento processo de transformação de tantos lugares engolidos por periferias imediatas ou mais distantes, desprovidas de qualquer encanto, extremamente banais e feias. Essas condições em nossas cidades exercem sobre a construção de moradia um efeito aniquilador. Seja pela ampliação das distâncias e a dispersão dos focos de interesse, seja pelo equívoco comercial de considerar a produção em massa como redutor de custos.
O resultado é essa aparência cemiterial de nossos periferias constituídas em sua grande parte conjuntos habitacionais, que se distinguem uns dos outros pelo tamanho e o número de unidades; as quais não merecem o nome de moradia, mas sim de “antropotecas” (como disse, certa vez, um reitor da PUC-Rio), para serem na melhor das hipóteses: núcleo de empilhamento de seres solitários, quase sempre desprovidos de futuro.
Ausência de vida social desses conjuntos, a extrema degradação da vida favelizada, o tédio dos arredores próximos, o crescimento ilimitado e desordenado das cidades são as causas da perda de urbanidade que transforma e aniquila a vida de seus moradores.
Milhões deles vivem na pobreza. Milhões encontram-se em condições de miséria e da indigência mais abjeta. Do outro lado, a classe média remediada e as camadas superiores escondem-se isolados em idílicas residências ou condomínios fechados, afastados ou situados em praias desertas ou nos locais mais privilegiados do sítio urbano protegidos por milícias privadas.
Shoppings centers criam situações de exclusividade ao estabelecerem as categorias de cidadãos que neles podem adentrar.
E por aí vai…
Em algumas cidades, o centro histórico e arredores foram relegados às lojas populares e ao “Zé Povim”. Esse assustador empobrecimento existencial na vida dos brasileiros é resultado da instabilidade social, que se propaga rapidamente em nossos dias e em toda parte. A cegueira da alma cobre e empana o brilho das coisas belas que a insensibilidade e o descaso apagaram e só a memória reteve e guardou.
No meu entender, sentimentos estéticos e éticos estão estreitamente ligados entre si. A beleza da natureza e a beleza do ambiente cultural criadas pelos seres humanos são necessários para mantê-los espiritual e moralmente sadios. Lamentavelmente parcela de nossa sociedade massificada, despida de substrato cultural sólido, deslumbrada, inteiramente voltada para os encantos da tecnologia e paralisada diante do progresso; parece não haver saída.
Não creio nisso.
É papel da sociedade evidenciar a estreita relação entre um projeto político e sua concretização física no plano da ocupação do território, de acordo com as reais necessidades do meio, das condições ditadas pela base econômica do país e das possibilidades concretas de ações conjuntas com as esferas do poder, com as universidades, com a iniciativa privada e essencialmente com o apoio e a participação popular.
Pois bem!
Não há como o IAB ficar indiferente a tal estado de coisas. Sem descurar de outros problemas de natureza diversa que assolam a vida nacional, ganha relevo o caráter de calamidade pública determinado pelo espectro da COVID-19.
É dever cívico do IAB associar-se às iniciativas que visem minorar os efeitos ruinosos da pandemia, emprestando solidariedade aos desvalidos da sorte e o apoio dentro do possível, às frentes de trabalho dispostas a lutar quotidianamente para a superação de tão grave e trágica crise. Como também, dedicar, em capítulo específico, a mais ampla reflexão sobre o que ocorrerá com as cidades e a humanidade perante o destino, e o futuro das cidades pós pandemia.
Assim mesmo e apesar de tudo, fica difícil calar ante o despropósito e a sandice que desorienta os pobres mortais.
Assistirmos, testemunhamos em “soberano silêncio” os crimes perpetrados contra o meio ambiente e outros que tais nos cacos de nossa história, arcabouço ético e moral a desmoronar. E ver o país descambar para os mais vergonhosos nichos do atraso, da incompetência e da omissão mais deslavada e descabida sob o véu da irresponsabilidade política, gravada a ferro e fogo no turbilhão da desconstrução do patrimônio e da riqueza da terra brasileira.
Ai de ti! Amazônia
Ai de ti! Cultura Nacional
Ai de nós! Brasileiros e brasileiras mergulhados nas teias, migalhas e cores vulgares do subdesenvolvimento.
Portanto, o país requer urgentemente um projeto estratégico de superação da crise. Um projeto nacional gerado a partir da sociedade civil, uma espécie de “contrato político social” capaz de criar as possibilidades de ruptura com o domínio da submissão, na qual o dominador é “incorporado” como se o processo de dominação fosse “material” e permita a superação da crise econômica e seus processos excludentes, em particular nas camadas médias que trafegam entre o sonho de ter e o receio de perder.
Outra questão a ser considerada diz respeito a distribuição das forças produtivas no território nacional. Somos um país urbanizado. Parcelas consideráveis da população vivendo em cidades que se tornaram o grande estuário dos problemas nacionais; portanto, expressão espacial das contradições, desigualdades e conflitos; fato que dota a profissão de arquiteto de profunda responsabilidade social inquestionável
Porque?
Ora! Porque para atendemos as carências do habitat projetamos o espaço circundante, o que é produto social; seja público ou privado. O desígnio do abrigo da sociedade passa por nossas mãos e pranchetas.
Assim, o IAB para conceber e viabilizar o seu projeto deverá promover um amplo balanço crítico de suas experiências em seus 100 anos de existência, capaz de delinear os princípios e as bases de nossa responsabilidade perante o conjunto da sociedade brasileira. Isto é: o papel estratégico do IAB nos diversos extratos da conjuntura nacional e na ação para a superação da crise, ou seja, o reencontro com o desenvolvimento nacional em todos os níveis. Para o IAB impõe-se necessariamente sua articulação com as propostas de um Projeto de Nação, tendo como bandeira e postulado: assegurar a todo cidadão e cidadã o acesso aos direitos fundamentais a uma vida digna: trabalho, moradia, saúde pública, educação, transporte e lazer.
Dito dessa forma parece fácil medir as possibilidades ou estabelecer graus de abordagem ou aproximação com os estratos do poder.
Hoje, acho isso impossível.
Reparem bem! O Brasil sempre tratou muito mal a sua história. A cada tempo, abrem-se lacunas, mudanças irremediáveis no cenário cultural brasileiro, marcadas pela incompetência e desprezo pela herança e pelos signos do patrimônio público brasileiro. Situem este presidente do dia em sua cavalar ignorância, em seus arrancos de populismo chão a cometer estripulias montado em motocicletas e comer pastéis em botecos, e sintam o arrepio e estrebuchamento (na cova) dos luminares que dedicaram sua vida a construção da história brasileira; e a consternação de quem (vivo) assiste ao acelerado desabrochar do dogmatismo fascista a sufocar os sentimentos libertários. Não dá. Ele não nos ouviria. Nem ele nem os seus capachos. Lamento colegas. Hoje, para minha tristeza, o Brasil vive um “apagão da decência”.
Enfim! Não reconheço este governo e nem o seus desmandos. O cenário exposto à larga obriga-me como cidadão a combatê-lo à luz de uma herança viva capaz de iluminar o caminho da oposição ao descompromisso tangível dessa quadrilha no poder. Corja de malditos que dita as normas danosas ao país e ao seu futuro. Camarilha de bandidos a destruir e sufocar as esperanças do povo brasileiro. Responsável pelo genocídio que assola o país, pelo cinismo e desprezo como encaram o abandono dos milhares de aleijões sociais despejado da sorte a caminhar descalços sob o sol do Brasil.
A tantas dificuldades somam-se os tropeços do desgoverno, o obscurantismo e a destruição das instituições culturais e científicas. Assim se constrói a liturgia do ódio a perseguir a livre expressão das ideias. O que se vê replicado é o velho dogmatismo fascista a sufocar os preceitos democráticos atiçando os preconceitos, a injustiça, o fanatismo e as perseguições injuriosas. É consternador verificar-se até que ponto vai a nossa aceitação a tal estado de coisas. O silêncio, o medo e a omissão são a morte da liberdade e da democracia.
O IAB não pode se calar!
Campelo Costa
Praia de Iracema, fev.21.