Urbanismo tem muito a ver com civilidade. Ruas limpas, gentileza, respeito ao pedestre, acessibilidade…
As formas da cidade ajudam a melhorar nosso comportamento, mas naquele velho dilema do quem nasceu primeiro, nosso comportamento também determina as formas da cidade. Por que então chegamos nesse traçado caótico?
Projeto para a Avenida Beira Mar com aterro. Detalhe para reurbanização entre a feirinha e o Náutico Atlético Cearense (DIVULGAÇÃO)
A avenida Dom Luís, coração da área nobre da cidade, já foi comparada à rua Oscar Freire, corredor de compras de luxo de São Paulo. Mas o nosso corredor não tem calçada. Em toda a extensão da via, onde deveriam flanar pedestres, há carros estacionados. Não dá para passear e ver vitrines. Mas os frequentadores, que gostam tanto de andar na Europa e do vai e vem de gente na Zona Sul do Rio de Janeiro, não parecem se ressentir com a falta de calçadas naquele pedaço ou em qualquer outro de Fortaleza. “Aqui onde moro, é o primeiro pedacinho da Aldeota que se configura uma série de atividades complementares a casa. Eu ando muito a pé, mas o pessoal do meu prédio não. Vão comprar pão de carro”, diz Fausto Nilo. “As calçadas são ruins porque aparentemente não tem usuários necessitando delas”.
José Almir, professor da Universidade Federal do Ceará que está fazendo pós-doutorado em Arquitetura e Urbanismo no Rio de Janeiro, lembra uma teoria sobre a origem da nossa burguesia que tenta explicar essa apatia da sociedade com o ordenamento urbano. Diferente da burguesia aristocrática, que compreendia melhor o valor dos ajardinamentos e da ordem, a burguesia comercial, que formou nossa elite, não tinha muita interesse na coisa pública. “Temos também um longo processo de convivência com certas práticas de privatização do espaço que é difícil mudar. Quando as pessoas veem o resultado do urbanismo, ficam admiradas. Mas é preciso pulso para bancar projetos realmente fortes que mudem um pouco essa cultura”, defende.
Até aqui, na avaliação dos urbanistas, o poder público tem dado um passo pra frente e dois pra trás. O caso do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura é emblemático. Sozinho, sem isenção fiscal para a ocupação qualificada dos galpões do entorno ou investimentos em estacionamento, o projeto reduziu seu impacto ao quarteirão que ocupa, preservou e deu uso ao sobrados do entorno mais imediato, quando se propunha a dar outra dinâmica para toda a área. “Ficou incompleto. Só foi executado o projeto arquitetônico. Eles inauguram a obra e tchau. O Fausto coloca no discurso do projeto da Beira Mar a importância do projeto urbanístico, mas se sair apenas o projeto de renovação propriamente dito – o paisagismo, o tratamento da orla – e esquecerem o que vai ter na parte de trás, já era. E quem vai acompanhar a Beira Mar depois da inauguração?”, questiona Almir.
Ordenamento, controle e fiscalização também são imprescindíveis para o urbanismo. A preocupação com o entorno, com as relações estabelecidas com os usuários e com o resto da cidade é que determina a qualidade urbanística de um projeto. Por exemplo, Fausto Nilo conta que foi chamado para pensar o estacionamento do Acquário, ou seja, de um equipamento, mas sugeriu um que servisse para toda a área, pegando os usuários da avenida Monsenhor Tabosa, do Centro Dragão do Mar, do Centro Cultural da Caixa e da Praia de Iracema, transformando todo aquele espaço num lugar de pedestre, desviando o fluxo pesado de carros por um túnel passando na Praça do Cristo Redentor e desembocando na Leste-Oeste.
“Não sei ainda como vão resolver, mas um estacionamento de frente para o mar para um único equipamento não faz sentido”, diz Fausto. É nesse sentido que Fortaleza tem a faca e o queijo na mão. Se nesse momento de tantos projetos a gestão pública chamar o urbanismo para pensar para além da área física de cada obra, a cidade pode ganhar qualidade. “Fomos (os urbanistas) muito culpados porque perdemos muito espaço. Nossa área foi desmontada no poder público, mas não acredito que seja pra sempre”, diz José. Fausto também faz uma mea culpa. “Já pensei se é coisa da nossa herança rural esse problema de não compreender as coisas em rede, culpava muito os gestores, mas acho que nós falhamos, ainda não conseguimos mostrar para a cidade o resultado do nosso trabalho e é uma sociedade muito resistente a isso ainda”. (Mariana Toniatti)
Fonte: O Povo Online