Fortaleza, 27 de outubro de 2016
Excelentíssimo Sr.
Jornalista Magela Lima
D.D. Secretário Municipal da Cultura de Fortaleza
Nesta
Exmo. Sr. Secretário,
Cumprimentando V. Exª, reporto-me à ameaça de aquisição, expulsão dos
moradores e demolição atualmente sofrida pela Vila Vicentina1
, conjunto
residencial popular pertencente ao Conselho Metropolitano Vicentino e situado
no bairro Dionísio Torres, nesta cidade, no quadrilátero definido pelas ruas
Dom Expedito Lopes (norte), Tibúrcio Cavalcante (leste) e Nunes Valente
(oeste) e a Av. Antônio Sales (sul).
O imóvel em questão demarca o processo sócio-histórico de ocupação do lado
leste de Fortaleza, fazendo parte, originalmente, das terras do antigo bairro da
Estância, de propriedade de Dionísio Torres. Na planta preparada em 1947
pelo Serviço Geográfico do Exército para a cidade, já se pode enxergá-lo em
sua atual localização, sendo à época um dos poucos existentes na região,
ocupada a partir da extensão da Av. Antônio Sales na direção das salinas de
Antônio Diogo.
Sem ter o apuro formal de algumas vilas tradicionais de Fortaleza, a exemplo
da Vila São José, no Jacarecanga, a Vila Vicentina, entretanto, destaca-se em
seu contexto urbano pelo hiato que sua presença promove na verticalizada
vizinhança, em franco curso de ampliação no bairro. Seu programa residencial
é composto por 42 residências térreas conjugadas, com tipologias e áreas
diferentes, e uma capela. As casas situam-se no limite da gleba com as
calçadas das vias que a margeiam. Algumas, tais como as que dão para a Av.
Antônio Sales, têm seus acessos precedidos por jardins.
A vila, de desenvolvimento horizontal, caracteriza-se pela singeleza da
arquitetura e dos métodos construtivos do seu casario, apresentando aqui e ali
algumas descaracterizações do seu desenho original (alteração do nível das
cobertas, mudança de esquadrias, modificação de espaços internos, ampliação
1
Também conhecida como Vila São Vicente de Paulo.
de beirais etc.). Em sua área central, um grande pátio arborizado transforma-se
num amplo quintal comunitário, para onde dão os fundos das residências. As
casas desenvolvem uma relação direta com as vias lindeiras, com a
valorização dos passeios como espaço não só de circulação como também de
permanência, agora beneficiados pela recente implantação de arborização de
médio porte.
Seus moradores pertencem a setores de baixa e média-baixa renda, com
destaque para o grande número de idosos e aposentados. Atuam na prestação
de serviços profissionais simples (mão-de-obra para a construção civil,
marcenaria e carpintaria, corte e costura, confeitaria, limpeza etc.), muitas
vezes ofertados em espaços de suas próprias moradias. Sua presença
equilibra e enriquece a convivência entre as classes sociais existentes na
localidade. Os mais antigos ali residem há pelo menos cinco décadas,
relatando, em suas singelas palavras, a trajetória da ocupação territorial do
bairro, anteriormente caracterizado como ampla porção de terra densamente
arborizada, cortada por picadas que se perdiam mato adentro…
Atualmente, mercê de um galopante processo de valorização imobiliária e
verticalização residencial causado pela intensa implantação de grandes
equipamentos públicos e privados e de obras de infra-estrutura viária, o bairro
Dionísio Torres assiste à rápida transformação de sua paisagem, com
evidentes prejuízos para a sua qualidade ambiental. Desaparece celeremente o
seu perfil horizontal, associado ao uso residencial unifamiliar, substituído pelas
torres dos condomínios residenciais multifamiliares, as quais transformam as
ruas em canyons estreitos percorridos por uma quantidade de veículos cada
vez maior, sem que se fale na contínua impermeabilização do solo e na
supressão da cobertura vegetal, o que ocasiona alterações negativas no
conforto ambiental.
Indaga, com efeito, o Arq. Roberto Ghione, em recente texto2
:
Determinados tipos de convivência social podem ser considerados
critérios para avaliar a qualidade patrimonial de um bem construído?
O valor social da propriedade privada pode ser reivindicado como
bem patrimonial? O edifício testemunha de um tempo superado pode
ser considerado patrimônio, ainda quando suas qualidades
arquitetônicas não representem uma condição destacada ou
relevante? O sentimento de parte da sociedade em relação a um
determinado bem é motivo para ele ser considerado patrimônio?
Em nossos dias, as solicitações de tombamento para imóveis isolados e
conjuntos urbanos têm sido encaminhadas aos órgãos de patrimônio,
notadamente os das esferas municipais, em feitio de reivindicações expressas
por movimentos sociais num contexto de denúncia e resistência às
2
“Patrimônio além da arquitetura: o Edifício Caiçara, os movimentos sociais e o direito à cidade”,
publicado na revista eletrônica Vitruvius, sessão “Minha Cidade”, em outubro de 2016.
catastróficas transformações que as cidades experimentam. Essa recorrente
operação, por outro lado, expõe a fragilidade e a inocuidade dos planos
diretores municipais e das leis de uso e ocupação do solo urbano, no mais das
vezes comprometidos apenas com a produção de indicadores urbanísticos
adequados à especulação imobiliária. A modelagem urbana que o capital
pretende impor a todas as cidades, de forma especial às metrópoles, que se
caracteriza pela negação do espaço público, a inexpugnabilidade do espaço
privado, o divórcio entre a casa e a rua, a gentrificação e a exclusão social, não
é e nem pode ser unânime ou empurrado goela abaixo como algo
incontornável somente por se dar em benefício de um pequeno grupo de
pessoas. O resultado dessas operações é o meio urbano em que vivemos,
fragmentado, apartado e desconfortável para a ampla maioria dos seus
moradores. Como diz o colega Ghione, falando da cidade em que mora:
Hoje se assiste, pelo menos no Recife, à valorização de arquiteturas
que manifestam determinados tipos de convivência perdidos no
modelo de cidade que a lógica do mercado impõe, isto é: o edifício
excludente e defensivo, a configuração da rua com muros fechados, a
mobilidade em automóvel, a desvalorização do espaço público, a
degradação de calçadas e mobiliário urbano, o consumo em
shoppings, em definitivo, a morte da cidade como lugar de
convivência social nos espaços públicos (a mesma que Jane Jacobs
reivindicava 60 anos atrás). Esse fenômeno transforma a
sociabilidade perdida em patrimônio, refletida nos tipos arquitetônicos
de um tempo condenado a sumir. Um tipo de patrimônio imaterial,
que tem sua referência e sua presença física nos edifícios
sobreviventes de outro tempo que viram emblemas, independente da
valorização arquitetônica nas convenções acadêmicas.
Os habitantes da Vila Vicentina, nos últimos meses, têm recebido toda sorte de
pressões para negociarem e venderem seus tetos a preços baixíssimos, em
nada condizentes com os valores praticados pelo mesmo mercado imobiliário
na região. Essa demanda ávida e desenfreada por lucro reflete-se nos
semblantes tensos, nas discussões entre vizinhos, nas rupturas de antigos
laços de amizade, nas casas vazias, na tristeza da vida de quem já tem pouco
ou quase nada no escasso tempo que lhe resta. A máxima empregada pelos
generais romanos em suas guerras de tomadas territoriais, “dividir para
conquistar”, continua sendo empregada a todo vapor em nossa cidade, com a
decorrente expulsão de populações tradicionais de seus antigos locais de
morada.
Portanto, nos marcos do direito à cidade, considerando a importância da cidade
como patrimônio ambiental que a todos pertence; a relevância sócio-histórica
do bem imóvel em comento; sua pitoresca implantação em bairro alvo de
intensa verticalização; a amenização ambiental que promove com sua
presença verde e horizontal; e até mesmo a cada vez mais rara ocorrência de
sua tipologia arquitetônica em Fortaleza, bem como me fundamentando nos
artigos 9º e 10 do Capítulo III da Lei Municipal Nº 9.347, de 11/03/2008, solicito
de V. Exª que se digne de proceder à abertura do competente processo
administrativo referente ao tombamento municipal da Vila Vicentina, cuja
pertinência será analisada pela equipe técnica da Coordenação do Patrimônio
Histórico e Cultural – CPHC dessa Secretaria. A proteção requerida, uma vez
entendida conforme e aprovada pelo Conselho Municipal de Patrimônio
Histórico e Cultural – COMPHIC, não só garantirá a permanência do conjunto
residencial como o distinguirá como eminente monumento municipal.
Nestes termos, peço urgente deferimento de minha solicitação.
Muito cordialmente,
Prof. Dr. Arq. Romeu Duarte Junior
CAU Nº A11729-3
CPF: 135.557.663-68