Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade nacional, escreve em sua coluna semanal no jornal O POVO.
Em todo lugar, o lúdico, a experimentação, o inusitado, a crise das certezas, a inquietação sua que o artista quer conosco compartilhar.
A Sérvulo Esmeraldo
A luz natural tremenda do fim de julho recortava as linhas retas do palácio contra um céu sem nuvens. Eu, em visita com meus alunos, tentando mostrar-lhes a essência da arquitetura no paralelo do mausoléu em balanço com a casa-grande, do jardim moderno de carnaúbas com o terreiro da fazenda, a continuidade do discurso de uma tradição renovada. Súbito, as marcas da passagem do geômetra por aquele lugar. Na relva, nos terraços, nos espaços de dentro, objetos dispersos questionando nosso modo de ver as coisas, de decifrá-las, de sabê-las. Exercícios de uma geometria que revela seu preciso encanto na boca aberta de nossa surpresa, coisa de quem, quando menino, brincava de estudar o espectro solar nas paredes do Engenho Bebida Nova.
Lá fora, pirâmides triangulares em plantas e alçados desafiavam o prisma funéreo em concreto e o seu desdém pela gravidade. Um rio em tiras secas de aço, suas pontas como dedos de uma longa mão em súplica. Folhas mortas dispostas em sequência, suas concavidades insinuando línguas, chegadinhas, abrigos à mente sensível do arquiteto. A fonte em homenagem a Lucio Fontana, sua água materializada na sombra dos esguichos metálicos no chão. Peças almejando o nosso espanto pelas diferentes leituras que ofereciam a um mero correr de olhos à sua volta. A luz, matéria-prima, revelando e iludindo em seus folguedos nas formas e materiais, sugerindo dimensões, efeitos e ambientes de uma geometria intangível.
Cubos etéreos, suspensos no tempo, suas linhas num sutil contraste em preto e branco. Intersecções de prismas construíam novas figuras imateriais. Composições sem título aceleravam o espaço, questionando nossa sensação de equilíbrio. Volumes contorcionados despertavam nossa curiosidade na descoberta dos pontos de contato de suas arestas. Discos em chiaro-oscuro ou mesmo um cilindro achatado, misterioso carretel, erguido na vertical do seu diâmetro? Tetraedros em conjunção ou um avião amarelo feito de folhas-de-flandres dobradas pelas mãos de um gigante? E tu, linha, és ave, serra ou nádega? Em todo lugar, o lúdico, a experimentação, o inusitado, a crise das certezas, a inquietação sua que o artista quer tanto conosco compartilhar.
E ele abre as portas de si ao expor a concepção de sua obra, elaborada no intervalo entre a intenção cinética e o gesto em mármore ou metal. Na transição do real para o virtual, sua inclinação insuspeita à beleza das matemáticas, mesmo que não compreenda os enigmas de seus muitos teoremas. Crato, Fortaleza, São Paulo, Paris, o mundo afora, Fortaleza novamente, o mundo é aqui. Após as máquinas eletrostáticas, os excitáveis e as esculturas públicas, a vez da luz, simples como um triângulo, a evidenciar materiais, superfícies, nuances, possibilidades. Daí fazer do aço, ar, de cunhas, florações, de riscos, volumes ser tarefa de um olhar incansável que encontra e demarca no espaço sua porção inteligível, abstrata, mas viva, crua, plena de sentido.
Ao nos despedirmos daquela aula de razão e sensibilidade, um pensamento inevitável: se a arte existe porque a vida não basta, como afirma Gullar, e diz o indizível, exprime o inexprimível e traduz o intraduzível, tal qual queria da Vinci, temo-la para não morrer de verdade, para não sucumbir ao cruel cotidiano da mera existência. Ah, Nietzsche, sabia que esta frase sua me serviria para alguma coisa um dia…
Fonte: Jornal O POVO