Quem te viu dona da imensidão azul, com tua família aos pulos sobre as ondas, não te aceita agora neste líquido jazigo. As profundezas que visitaste, com suas maravilhas e mistérios, repousam no fundo dos teus grandes olhos imóveis. Tuas barbatanas, qual asas colossais, não mais se debatem sobre a água atordoando os cardumes, teu singelo almoço diário. Tuas modinhas, baleia-cantora, represaram-se em tua garganta-túnel, tua voz emudeceu. Que é da tua mãe e do teu pai, quem será por ti agora? Nós, humanos, mamíferos como tu, apenas rondamos o teu moribundo volume, imprestáveis.
De tantos arpões escapaste para morrer justo aqui, nas Flexeiras. A praia se dobra em dócil remanso, teu leito de morte num reles banco de areia. Esgotada, nem lembra o gigante que singrava os mares ao sabor dos ventos e aos esguichos em teus divertidos folguedos marinhos. Mesmo assim, sabias quão frágil eras, titã-colibri. Agora é a maré secando, a respiração difícil, os músculos retesados, o ar faltando, a vida que se vai. Barcos chegam de longe para ajudar, em vão. Nós, humanos, capazes de tudo, também pisamos sorrindo sobre o teu sofrimento, canalhas que somos.
Ah, Leviatã, o que está a nos dizer este teu passamento nesta orla plena de luz solar? Que mensagem trazes para nós em teu canto final? Que tudo, por maior e mais forte que seja, um dia se acaba? Que entre a bonança e a procela o tempo tece um novelo até este se esgarçar? Vejo-te agora, enorme fantasma, abandonar tristonho esta carcaça de tantas aventuras e misturar-se às nuvens no céu acima, quem sabe outras baleias, tuas irmãs, de sorte igual. Nós, humanos, pesarosos e pragmáticos, já batemos o martelo: servirás à ciência, tua ossada ornará um rico museu, seremos mais sábios com o teu fim.
Estranho, megaptera, só tenho a te agradecer. Acordaste em mim o antigo menino que varava as tardes na Base Aérea em façanhas inimagináveis por mares nunca navegados, agarrado à cauda do cachalote de Melville como a uma tábua de salvação. O ódio e a obsessão do louco capitão da perna-de-pau, a batalha entre a razão humana e o instinto animal, o prelúdio da vida adulta em forma de literatura, sutil metáfora da condição do homem contemporâneo. Engraçado, minha querida e defunta jubarte: há pouco peguei-me no espelho, dizendo de mim para comigo: “Chamai-me Ismael”…