Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade nacional, escreve em sua coluna semanal no jornal O POVO.
“O sol impiedoso queima a pele negra do teu dorso, teu corpanzil de nove metros logo mais será repasto de quem tu comias. Nós, humanos, da tua mesma classe, presenciamos o teu encalhe”

O que vieste fazer aqui, Leviatã, nas praias desta terra tão hostil? Por acaso o mar, o teu salgado lar doce lar, mostrou-se de repente inóspito ou foi a curiosidade do que poderias encontrar à sua beira o que te trouxe aqui? Teus pulmões, foles tremendos que usavas para produzir a armadilha de borbulhas com que caçavas nos oceanos, agora simplesmente arquejam, fatigados. O sol impiedoso queima a pele negra do teu dorso, teu corpanzil de nove metros logo mais será repasto de quem tu comias. Nós, humanos, da tua mesma classe, presenciamos o teu encalhe, inúteis como nesta hora tua imensa boca. 

Quem te viu dona da imensidão azul, com tua família aos pulos sobre as ondas, não te aceita agora neste líquido jazigo. As profundezas que visitaste, com suas maravilhas e mistérios, repousam no fundo dos teus grandes olhos imóveis. Tuas barbatanas, qual asas colossais, não mais se debatem sobre a água atordoando os cardumes, teu singelo almoço diário. Tuas modinhas, baleia-cantora, represaram-se em tua garganta-túnel, tua voz emudeceu. Que é da tua mãe e do teu pai, quem será por ti agora? Nós, humanos, mamíferos como tu, apenas rondamos o teu moribundo volume, imprestáveis.

De tantos arpões escapaste para morrer justo aqui, nas Flexeiras. A praia se dobra em dócil remanso, teu leito de morte num reles banco de areia. Esgotada, nem lembra o gigante que singrava os mares ao sabor dos ventos e aos esguichos em teus divertidos folguedos marinhos. Mesmo assim, sabias quão frágil eras, titã-colibri. Agora é a maré secando, a respiração difícil, os músculos retesados, o ar faltando, a vida que se vai. Barcos chegam de longe para ajudar, em vão. Nós, humanos, capazes de tudo, também pisamos sorrindo sobre o teu sofrimento, canalhas que somos.

Ah, Leviatã, o que está a nos dizer este teu passamento nesta orla plena de luz solar? Que mensagem trazes para nós em teu canto final? Que tudo, por maior e mais forte que seja, um dia se acaba? Que entre a bonança e a procela o tempo tece um novelo até este se esgarçar? Vejo-te agora, enorme fantasma, abandonar tristonho esta carcaça de tantas aventuras e misturar-se às nuvens no céu acima, quem sabe outras baleias, tuas irmãs, de sorte igual. Nós, humanos, pesarosos e pragmáticos, já batemos o martelo: servirás à ciência, tua ossada ornará um rico museu, seremos mais sábios com o teu fim.
Estranho, megaptera, só tenho a te agradecer. Acordaste em mim o antigo menino que varava as tardes na Base Aérea em façanhas inimagináveis por mares nunca navegados, agarrado à cauda do cachalote de Melville como a uma tábua de salvação. O ódio e a obsessão do louco capitão da perna-de-pau, a batalha entre a razão humana e o instinto animal, o prelúdio da vida adulta em forma de literatura, sutil metáfora da condição do homem contemporâneo. Engraçado, minha querida e defunta jubarte: há pouco peguei-me no espelho, dizendo de mim para comigo: “Chamai-me Ismael”…