Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

A Gonçalo Cavalcanti


A tarde descambando para o ocaso, o bar modorrento, os amigos que ficaram de vir e ainda não deram as caras, o homem só. Sobre a mesa, a dose de uísque com pouco gelo e um jornal do dia.


Para espantar o tédio e mesmo sem muita esperança na espécie humana, o sujeito toma do periódico e folheia suas páginas, tratando de não descabelá-lo ao vento. “Quem lê, para que tanta notícia?“, interroga-se, a vista correndo por sobre a nota do bloco político-econômico formado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como a grande novidade mundial. Brinca consigo, parafraseando o Pink Floyd: “It’s just another BRICS in the capitalist wall…Abram do olho, não, que isso aí vai acabar sendo o FMI do B, mais uma sucursal do inferno para os países pobres do planeta. O negócio é ouvir o povo, viu, Seu Mandarim?”.


Tinha essa mania esquisita, a de ler o noticiário e discutir o seu conteúdo, narrador e comentarista de si para si. Agora era a violência, internacional e alencarina, que ocupava a sua atenção. “Conflito desequilibrado, totalmente assimétrico. Israel atacando a Faixa de Gaza com aviões e mísseis. Crianças mortas às pencas. No caso, o Golias mudou de lado. Será que o extremo sofrimento livra do pecado quem o experimenta, coloca-o acima do bem e do mal, dá-lhe super-poderes?”, indagava-se, perplexo. “E agora o mondo cane local: em junho, 375 assassinatos no Ceará, 173 só em Fortaleza, 112 após o dia 12, quando a Copa começou, mesmo com mais de sete mil meganhas na praça. Isso dá uma diária de 12,5 mortes, mais do que em muita guerra boa por aí. Somadas aos assaltos a banco no interior…”, silenciou.


Tinha essa mania esquisita, a de ler o noticiário e discutir o seu conteúdo, narrador e comentarista de si para si. Agora era a violência, internacional e alencarina, que ocupava a sua atenção.


Enquanto analisava o cotidiano, três rapazes brandindo instrumentos musicais adentraram o estabelecimento, sentando-se numa mesa de canto. Neste momento, limpando dos olhos o sangue do tema anterior, a bebida descendo fácil, já cuidava dos assuntos políticos, mais sujos e sorrateiros que nunca. “Quer dizer então que os amiguinhos de infância viraram inimigos figadais, de dedinhos cortados e tudo?”, mangou, “Que as juras de admiração e amor eterno eram falsas? Minha velha e boa mãe, que Deus a tenha, sempre dizia: “quem com porcos anda, farelos come”, bem como “passarinho que anda com morcego dorme de cabeça para baixo”. Ai, ai, que campanha sórdida teremos!”, o tempo ruim prenunciado. Os fracos acordes da banda desafinada incomodavam-lhe os ouvidos entorpecidos pelo álcool.

 

Mas era o destino da cidade o que então lhe preocupava. “Quem terá coragem de colocar o guizo do planejamento urbano na Loura gata? Trabalhozinho difícil esse. Eu é que não queria um serviço desses para mim. Como dar cabo de uma tradição centenária de desordem planejada e improviso generalizado?”, invocou-se. “Pelo que entendi, as coisas só se arrumarão lá pelo ano de 2040. Até lá, já terei batido o catolé, já terá morrido o burro e quem o tange. E do agora, deste agudo agora, quem cuidará?”, provocou. Leitor ávido, seu interesse pulava de caderno em caderno. “Só faltava essa, o Ceará imitar a seleção brasileira, dando vexame e apagão em campo. Virou moda levar gols bobocas de forma rápida, o chororô frouxo, o cabelo coisado”. E, grave, sentenciou: “Há algo de podre no reino de Porangabuçu”.


Quem terá coragem de colocar o guizo do planejamento urbano na Loura gata? Trabalhozinho difícil esse. (…) Pelo que entendi, as coisas só se arrumarão lá pelo ano de 2040.


Entretanto, havia um pequeno, porém insistente, detalhe que a todo instante lhe interrompia o contato com o mundo impresso sobre o papel. Os mal ajambrados músicos, todos de péssimas relações com Euterpe, perseguiam canções de um repertório de gosto duvidoso com um violão fuleiro, um pandeiro zoadento e uma voz gasguita. Apesar dos percalços na pauta, pareciam extrair extremo prazer daquela tortura sonora. Nosso herói, muitos bemóis etílicos acima do tom, viu a luz no fim do túnel: “Amigos, aguentar alguém tocando mal um monte de música ruim e ainda achar graça do castigo é a maior prova de amizade que existe. Sim, a humanidade tem salvação! Eis os arautos da redenção do homem!”, animou-se, a voz pastosa. “Turma boa”, propôs, zarolho, o cantor, “vamos atacar de Babalu!”.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/07/21/noticiasromeuduarte,3285004/mundo-de-papel.shtml