Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade Nacional, escreve em sua coluna semanal, no Jornal O POVO.

Aos amigos da vida inteira do Colégio Cearense


Tive-o por uma tarde inteira, vazio e silencioso, totalmente ao meu dispor. Meu tão querido brinquedo da memória, todo para mim e mais ninguém, à mercê das minhas tantas lembranças. E pensar que essa grata oportunidade deu-se pela via profissional do patrimônio… Passei os dias anteriores à visita numa cruel ansiedade. Depois de tantos janeiros, como ele me receberá? Terá mudado muito? Os mastros de espiribol ainda estarão no mesmo lugar? Me reconhecerá? E após, me reconhecerei? Muitas perguntas numa cabeça tonta movida por um coração agoniado a mil. A boca sedenta, doida para provar daquela água mineral. Guardei em sigilo a minha ida lá, um tesouro secreto. Ah, mocidade do Colégio Marista, o que não darias para ter esta minha sorte…


Adentrei-lhe pela frente, como no passado, quando chegava ao Centro no ônibus vindo da Aerolândia. Um feio gradil azulado me separava do meu mimo. Solícitos funcionários já me aguardavam. Pedi-lhes para ficar só, inventando o falso motivo de que tinha muito trabalho a fazer. Claro, não queria ser flagrado com os olhos marejados. O jardim transformado num estacionamento, as árvores escondendo a fachada principal, o parque infantil engolido pela colorida construção recente. As salas de aula do térreo, por onde andarão D. Teresa, D. Maria Luísa, D. Francisca e D. Lígia, minhas perfumadas professoras do primário bem feito? As urnas repletas de mensagens para o futuro ainda estão no mesmo lugar, algumas já abertas, segredos revelados, otimistas profecias.

 

Tive-o por uma tarde inteira, vazio e silencioso, totalmente ao meu dispor. Meu tão querido brinquedo da memória, todo para mim e mais ninguém, à mercê das minhas tantas lembranças. E pensar que essa grata oportunidade deu-se pela via profissional do patrimônio… Passei os dias anteriores à visita numa cruel ansiedade. Depois de tantos janeiros, como ele me receberá? Terá mudado muito? Os mastros de espiribol ainda estarão no mesmo lugar? Me reconhecerá? E após, me reconhecerei? Muitas perguntas numa cabeça tonta movida por um coração agoniado a mil. A boca sedenta, doida para provar daquela água mineral. Guardei em sigilo a minha ida lá, um tesouro secreto. Ah, mocidade do Colégio Marista, o que não darias para ter esta minha sorte…


Adentrei-lhe pela frente, como no passado, quando chegava ao Centro no ônibus vindo da Aerolândia. Um feio gradil azulado me separava do meu mimo. Solícitos funcionários já me aguardavam. Pedi-lhes para ficar só, inventando o falso motivo de que tinha muito trabalho a fazer. Claro, não queria ser flagrado com os olhos marejados. O jardim transformado num estacionamento, as árvores escondendo a fachada principal, o parque infantil engolido pela colorida construção recente. As salas de aula do térreo, por onde andarão D. Teresa, D. Maria Luísa, D. Francisca e D. Lígia, minhas perfumadas professoras do primário bem feito? As urnas repletas de mensagens para o futuro ainda estão no mesmo lugar, algumas já abertas, segredos revelados, otimistas profecias.


A escada de rumo duplo, naquele vestíbulo de tanta recordação, me leva à varanda voltada ao pátio interno. Lá de cima, vislumbro o que jamais deixará de ser o meu domínio. É aqui que o meu umbigo está enterrado. Tantas solenidades, vários discursos, inúmeros carões, a veia saltada no nariz do notável diretor de pavio curto. Os balaustres dos peitoris guardam ainda as marcas de um montão de pés, a uma hora dessas construindo caminhos algures. Vívidas cenas do vivido em toda parte, instantes gravados a fogo no lembrar: a briga entre alunos causada por um apelido, as falas inesquecíveis do professor admirado, o rock descoberto nas sessões musicais do auditório, as modorrentas provas de química, o dia em que o Cearense tornou-se misto…


Passeio por seus lugares, de escalas tão diversas. O cantinho onde amarguei o choro de uma nota baixa e depois saboreei, sozinho, uma honrosa premiação. A classe onde uma turma inteira aguentou firme uma punição sem delatar o autor da presepada. A capela onde fiz a primeira comunhão, a cantina e seus quitutes imaginários, a tão temida coordenação, a quadra onde jogávamos um futebol impossível de um povaréu contra outro atrás de uma bola de meia. O prédio novo, já velho, mas ainda moderno, com suas janelas de guilhotina, guarda o fantasma do bom e distraído irmão francês que caiu no poço do elevador. Ah, o rigor, o apuro, a austeridade, a educação, o esmero, o hino, o lema fiel: “sempre trabalhar, lutar e vencer, por Deus, pela pátria e por Maria”…


Por um momento, pensei ter visto, no campo dos benjamins ceifados, uma multidão de mestres e amigos daquele tempo já idos. Mera miragem, lágrimas embaçando a vista. Melhor pensar na amizade que as décadas não apagam, que se fortalece a cada encontro, que não pede desculpa pela distância ou pelo silêncio, que foi, é e sempre será. O sol já se deita por trás do ginásio, o céu parece se arrepender. Certo, Camilo Castelo Branco, tens toda a razão: “Saudade é um afeto, excelso amor, o melhor amor e o mais incorruptível que o passado nos herda”. Finda a tarefa, reflito: “O que será de ti, qual a tua sorte, amigo?”. Despeço-me e vou. Ah, sim: foram-se os mastros de espiribol, mas aquela água boa por lá ainda corre, a aplacar a sede dos que não esquecem.

Fonte: http://www.opovo.com.br/app/colunas/romeuduarte/2014/03/31/noticiasromeuduarte,3228448/o-privilegio-da-saudade.shtml