Romeu Duarte, Conselheiro Vitalício do IAB- CE e Ex-Presidente da entidade nacional, escreve em sua coluna semanal no jornal O POVO.

Joaquim Távora:Com as bênçãos da Piedade, ao mesmo tempo igreja e enclave, sigo errante por ruas e becos tortuosos.


Sob a sombra amiga das castanholeiras, passeio no meu bairro favorito nesta hora tranquila da manhã de domingo. Aqui parece que elas construíram seu lar, reunindo-se em densos arvoredos a nos proteger. Suas folhas cadentes formam tapetes marrons sobre estas estreitas calçadas para os nossos passos sem planos. Andar, simplesmente andar com a alma e os sentidos abertos às sensações e surpresas, como a do rubro buquê de papoulas que me namora daquele manso jardim das Dorotéias. As velhas casas da Visconde do Rio Branco, ainda resistindo em seus ornatos e detalhes. Na vila, o velho sem camisa tomando guloso um copo de refresco de cajá. O risco de gás do avião no claro céu sem nuvens.

Com as bênçãos da Piedade, ao mesmo tempo igreja e enclave, sigo errante por ruas e becos tortuosos, buscando, quem sabe, a mim mesmo. Adentro a pequena mercearia, o cheiro tão familiar da mescla de querosene, peixe seco e sabão. Não, não vou comprar nada, meu senhor, apenas entrei aqui para me recordar. Vassouras, penduradas por uma corda nos caibros, balançam na brisa ligeira. Sacas de açúcar, feijão, arroz e milho aguardam a boca de alguém. Arraias coloridas prontas para voar nos ventos das férias do julho vindouro. O gato dormindo sobre o balcão de marmorite. Tudo neste agora, e como.

Senhoras sentadas em roda fiando o mundo em suas conversas, as casas miúdas de olhos postos lá fora. Os altos prédios que estão levantando, a perda do ar de cidade do interior, quem serão os novos vizinhos? Homens de idades diferentes, a garrafa de cachaça passando de mão em mão, a avoante torrada no prato de farinha sobre a mesa. Bala de borracha sabor hortelã contra a voz rouca das ruas, dou o Mota e o Fernando Henrique pelo Hulk e o Júlio César e ainda quero troco, cadê a goiaba que estava aqui? Um futebol vadio de ponta de areia reúne os meninos na praça da Padre Antonino, as canelas magras na mira do gol.

O faro apurado reúne os aromas dos tantos almoços que escapam sedutores das moradas. Baião de dois com queijo, galinha à cabidela, panelada, bife acebolado, cozido de boi. A memória boiando na água grande de uma peixada. O pecado e o perigo que são os doces e as compotas: mulher, assim tu não entra mais nas calças. Os retratos dos antepassados assistem ao singelo banquete lembrando que não há fome do lado de lá. O sofá de couro falso, o televisor moderno, a mesinha de centro, o som tocando Nelson Gonçalves, papai gostava tanto dele. O olhar curioso esquadrinhando vidas a esmo.

De repente, a verde catedral do Parque Rio Branco. As castanholeiras, agrupadas em santuário, conformam a nave alta e solene tão admirada. Um mirrado riacho serpenteia no bosque, dividindo-o em continentes e países às mentes e sensibilidades infantis. A luz quebrada pela virente folhagem desenha uma delicada renda móvel no chão. Atletas de fim de semana cumprem seu suado dever enquanto um roxo namoro acaba de começar bem ali. Redes balançam o sono de casais em suas cores tensas. Sem medo das formigas, famílias fazem seus piqueniques sobre o xadrez das toalhas esticadas na grama. Vai-te, sanhaço, que lá vem o bem-te-vi.

O dia descambando para a tarde. Logo mais à noite, este lugar, cujo hino é o rock dos Faraós, será embalado pela mistura sonora da trilha dos programas domingueiros com o batuque dos terreiros de umbanda. Patriota de bairro, brindo aos seus heróis, seus nomes gravados no pavimento das vias, Henrique Rabelo, Soriano Albuquerque, Padre Chevalier, João Brígido, a velha Rua da Bomba que me viu menino. Tomo a saideira, fecho a conta, passo a régua, a ventania nas bandeirinhas de São Pedro e São João, hoje só amanhã. No bolso da camisa, um croquis, um poema incompleto, um começo de canção, o germe amarfanhado desta crônica.

Fonte: Jornal O POVO.