Qual é a tua, Loura doida? Só porque aniversarias, 289 anos num corpinho de 500, ficas aí toda prosa e gabola como se as coisas estivessem todas muito bem? Às vezes, o doce do chantilly e da cereja do bolo faz a gente esquecer a tal da realidade. Como és frívola, embeveces-te com os fáceis e falsos elogios que esses malandrões te fazem a toda hora. Ouvir umas verdades, mesmo que duras e difíceis de engolir, às vezes em nós opera maravilhas. Não, não faça de conta que observas o vai-vem das ondas do mar ou que escutas a cantiga do vento, que eu posso ser tudo, menos abestado. Tira o picolé de cajá da boca e presta atenção no que eu vou falar. Que cesse a música na roda de violão na Ponte dos Ingleses, pois algo será dito. Belezinha, o seguinte é esse:
O que tu vais ser quando parares de inchar e crescer? O que queres ser, qual a tua vocação, maluca? Achas que esse teu turismo de sea, sun and sex bota alguém para a frente? Que vale a pena ser densa e desigual? Que é bacana ter 18, 20 municípios, a tua gloriosa região metropolitana, pendurados à míngua na barra da tua saia? Que é um luxo ser a maior metrópole do semi-árido no mundo em meio a uma rede urbana esquálida como a nossa? Que é uma honra ter as tuas praças José de Alencar e do Ferreira transformadas em hospedarias de miseráveis? Sei não, acho que piraste ou então andas frequentando muito os shows do Falcão e da Rossicléa. Quem sabe, uma temporada no hospício de Parangaba não te faria bem? E tu aí, só bicicletando.
Claro, a Praia de Iracema, mesmo quase tornada num simulacro de si própria, permanece linda. As tuas lagoas, apesar de todos os maus tratos, ainda continuam transportando o céu para o chão, belos e líquidos espelhos. Remanesce o bucólico ar de sítio no emangueirado Benfica. O Jacarecanga mantém o charme aristocrático (e, talvez, de rico falido, como diria o Augusto Pontes), não obstante a presença incômoda daquele edifício que se pretende cidade. Os magníficos jardins do Meireles, infelizmente divorciados da rua. O aroma de peixada na água grande e camarão ao alho e óleo, que é a cara da Varjota. A panelada da feira de Messejana, a buchada do São Sebastião, a roda amiga do Raimundo do Queijo, os bares mil, teu povo, quiçá o teu melhor.
Mas o diabo é que detestas planejamento, estratégia, tática, essas tralhas que consideras artificiais demais, coisa de futebol de perna de pau. Boêmia, teu negócio é um dia atrás do outro com a noite pelo meio, o apurado repartido na base do um pra mim, dois pra tu, um pra eu. Quase tricentenária, não queres nem ovo com o porvir, que determina o presente, marcado pelo passado. O que te bate a passarinha é o triângulo da chegadinha, o café com a tapioca quentinha, o flerte flanêur na Beira-mar, o caranguejo das quintas na Praia do Futuro. Embora isso, tens trocado teu prazer rueiro pelos gradis, muralhas, cães e concertinas que te prendem em casa. Ah, esfinge esquizofrênica, alvinegra ou tricolor, quem te merece, quem te conhece que te compre, insana.
Ok, sei que já enchi o teu saco por demais. Hoje é um dia de celebração, tens convidados importantes, cantarão para ti, farão brindes em tua homenagem, o sol te beijará, a lua te mandará um luar daqueles. Contudo, ingrata, não olvides os que contigo repartem o cotidiano, sobretudo os desvalidos. Os que se acham no ônibus lotado, no terminal inseguro, na mira do trabuco do bandido, no bairro esquecido metamorfoseado em rampa de lixo, no sono solto sob as estrelas, no buraco fedido compartilhando o cachimbo de crack. Na oportunidade em que completas mais uma volta no ponteiro da vida, dá um tempo no champagne, olha em volta e repara em quem realmente te ama. Recita o hai-kai do Millôr: “Aniversário é uma festa pra te lembrar do que resta”.
Fonte:Opovo