Autor: Sérgio Magalhães

Passando por um mergulhão recém- inaugurado, comentou comigo o taxista em Brasília: “Não entendo o pessoal que reclama de gastos com obras da Copa; fosse na Alemanha, que tem tudo, tá bem; mas aqui, que não tem nada?”


De fato, se considerarmos o todo de cada cidade, essa avaliação tem o seu valor.
Brasília, por exemplo. O Plano Piloto (PP), a região do Distrito Federal sob desenho de Lúcio Costa, tem qualidade ímpar, com superquadras, paisagismo magnífico, edifícios públicos de reconhecimento mundial, enfim, é uma civitas e uma urbes, como queria o seu autor. Mas no PP moram menos de 300 mil habitantes enquanto que na Grande Brasília já são mais de três milhões. Nas áreas satélites ao Plano, a realidade é outra: há falta de infraestrutura, de transporte, de arborização e de serviços públicos.
 
É uma realidade comum às cidades brasileiras, nas quais a maior porção é composta por uma ocupação difusa com urbanização precária e grande escassez de serviços públicos. Tem razão o taxista: falta muita coisa na cidade. A obra pública é indispensável.
 
Os governos focam na obra o seu objeto de desejo. Querem obra (não necessariamente obra pronta…). E, paradoxalmente, não se preocupam em planejá-las.
 
No país, os incipientes sistemas públicos de planejamento foram desmobilizados, seus quadros funcionais são mínimos. Os governos passaram a se apoiar em equipes comissionadas, que não lhes dão o suporte da pesquisa e da reflexão.
 
Querendo abstrair a carência de planejamento e de projetos, sem os elaborar, o governo federal editou um regime especial de licitação de obras públicas, o RDC, com o qual as empreiteiras são contratadas mesmo sem projeto, o que vale para as obras da Copa e do PAC. Reduz-se o prazo para contratação do construtor, não necessariamente o das obras; sem projeto, elas têm preço e qualidade à conveniência do interesse comercial da empreiteira. Não é um bom legado, como nos diz o sentimento das ruas. Felizmente, a generalização desse regime para todas as obras públicas, em todos os níveis de governo, que chegou a ser proposta no Congresso, foi rejeitada pelo Senado esta semana.
 
O planejamento da ordenação do território e das obras públicas correspondentes é função de Estado e pede continuidade. Agindo sem planejamento, na emoção da premência, os governos aumentam as chances de erro — no custo, na qualidade e nos prazos. Erram também na avaliação das prioridades, o que é apontado por muitos brasileiros que se manifestam em relação às obras da Copa.
 
Lá na Alemanha, que tem tudo, por certo cada obra pública é planejada, discutida com os cidadãos, avaliados as possibilidades e os custos. O governo contrata projetos completos e depois é que contrata a construção.
 
Aqui, onde falta tanto, mais necessário seria um Estado preparado para definir investimentos de alto rendimento social. A desigualdade intraurbana, que se resume na expressão do taxista — “Aqui, que não tem nada” —, é um dos mais prementes desafios da cidade contemporânea. A construção da consciência coletiva por cidades menos desiguais, esse sim, talvez possa ser um dos melhores legados da Copa.
 
Uma das lições do futebol é que o improviso, às vezes, dá certo no campo. Nas obras, fica mais caro. Na Copa, são outros quinhentos. Mas, por enquanto, vamos torcer!
 
Em artigo publicado no Globo, neste sábado, 24 de maio, o presidente do IAB discute o desejo dos governos por obras públicas, mas que não se preocupam em planejá-las. Ele aborda a proposta de ampliação do RDC, que foi rejeitado.
 



Texto originalmente publicado no jornal O Globo, no dia 24 de maio. Clique aqui para ler o artigo no Globo.

Autor: Sérgio Magalhães

Mini currículo: É arquiteto e doutor em Urbanismo (UFRJ/FAU-Prourb), professor do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi secretário municipal de Habitação do Rio de Janeiro (1993-2000), secretário de Estado de Projetos Especiais do Rio de Janeiro (2001-2002) e subsecretário de Estado do Desenvolvimento Urbano do Rio de Janeiro (2003-2004).

Fonte: http://www.iab.org.br/artigos/sao-outros-quinhentos